SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 2 de julho de 2010

A PEDRA E OS OLHOS D'ÁGUA (Crônica)

A PEDRA E OS OLHOS D'ÁGUA

Rangel Alves da Costa*


Quase todos os dias, do amanhecer ao entardecer, a velha e solitária matriarca era vista sentada por trás de sua janela na sala da frente do velho e imponente casarão. Com as feições sempre fechadas e olhos entristecidos, olhava fixamente para o seu jardim e adiante dele, após os gradeados, nas pessoas que passavam pelas ruas. Se olhava para cima, para as nuvens e as paisagens, ninguém nunca via; se mirava os passarinhos que passavam em revoada, ninguém nunca percebia. Parecia uma pedra enfeitada para a solidão.
Vivia sozinha com suas riquezas e seus empregados. Uma dama de companhia suportava suas exigências, cuidava dos seus pratos especiais e dos seus remédios. Mesmo vivendo ali há mais de vinte anos, só falava o estritamente necessário, pois a patroa não permitia conversas amigueiras, confidências ou qualquer tipo de aproximação. Um jardineiro fiel cuidava do bosque florido, dirigia o seu veículo antigo e bem conservado e ainda servia como verdadeiro vigia para que estranhos nem olhassem muito para as plantas e flores e as pequenas cachoeiras que rodeavam a mansão.
Outros empregados cuidavam do restante das coisas. Mas ninguém cuidava da senhora como deveria porque ela mesma não deixava. Era dura, ruim, arrogante, sem demonstrar ter nenhum sentimento bom no coração. Por não suportar aquela pessoa tão ranzinza e embrutecida é que os seus filhos e netos evitavam ao máximo um contato com ela. A dita senhora já havia dito aos próprios parentes que a deixassem em paz, na sua solidão, pois não suportava ver a cara deles. Nem de ninguém, parecia.
Diziam que ela ficava ali sentada dia e noite próxima à janela observando se alguém parava para ficar apreciando as belezas do seu jardim, pedir uma flor ou implorar por uma roupa velha ou um resto de comida. Ficava observando porque os seus empregados estavam permanentemente proibidos de deixar alguém parar na calçada e olhar para dentro ou tocar a campainha para mendigar. Aquele que visse alguém com qualquer destas atitudes e não tomasse logo as devidas providências estaria prontamente despedido.
Contudo, numa manhã de chuva fininha caindo lá fora, a senhora mirou o olhar mais atentamente numa garotinha que passou diante do jardim, abriu uma pequena caixa e dela retirou um passarinho, fazendo com que voasse livre em direção das plantas. A velha imediatamente gritou pelos seus empregados, porém ninguém apareceu naquele instante.
Era para ver as feições da menina e impedir que ela parasse novamente na calçada. Não falou sobre o passarinho, apenas ficou olhando para cima para ver se o enxergava e espantava de lá. De repente, eis o sabiá pousando no umbral da janela e cantando alegremente. A velha não teve nenhuma reação, apenas ficou mais triste.
Nem mesmo ela sabia por que, mas na manhã seguinte estava ansiosa esperando a menina passar. Nessa manhã ela não veio, mas sim na seguinte, e fez a mesma coisa: parou diante do jardim, abriu uma caixinha e soltou um passarinho. A velha não gritou mais, apenas colocou o binóculo para enxergar mais de perto a garotinha. Não deu para vê-la direito, pois a mesma saiu pulando toda feliz. Recebeu a visita dos dois passarinhos na sua janela e desta vez chorou.
A menina passou outro dia por ali, mas a senhora achou muito estranho que ela não tenha soltado nenhum passarinho, mas ao invés disso parou, colocou as duas mãos na grade e ficou olhando o jardim por um bom tempo. Foram os instantes suficientes para que a senhora aumentasse a visão do binóculo e mirasse bem no rosto da menina: moreninha clara, rosto angelical, cabelos lisinhos caindo sobre os ombros e uns olhos d'água cor de mar. Menina sereia, pensou, mas que bela e pequena sereia diante do meu jardim. O que será que ela tem que hoje não trouxe passarinho e está assim tão triste? Indagou a si mesma. E ficou triste também, mesmo com os passarinhos no umbral.
Passaram-se mais de dez dias sem a menina aparecer. A velha de coração de pedra não queria se humilhar perguntando nada a ninguém e parecia doente de saudades daquela criaturinha, agora encantadora aos seus olhos. Porém, avisou a todos os empregados que se vissem uma menina com tais e tais características diante do jardim ou nos arredores era para fazer tudo para levá-la à sua presença.
Mas os dias foram passando e nada da menina aparecer. Então a velha começou a se preocupar e a chamar seus empregados para pedir informações, propondo até mesmo que daria uma boa recompensa a quem encontrasse ela. Mas nada. Então os empregados perceberam que ou encontravam a garotinha ou a patroa ia morrer de tristeza.
Nos arredores e mais distante, as informações que recebiam sobre ela é que morava nas ruas e era vista sempre cuidando dos passarinhos da praça. Foram até lá e disseram que há dias que a menina havia desaparecido. Um morador de rua chamou o motorista num canto e disse o seguinte: "Você pode achar até que sou maluco, mas só quem pode dar informações sobre ela são os passarinhos, que são os únicos amigos que ela tem".
Mesmo com medo de perder o emprego, o motorista chegou ao casarão e contou à patroa o que o mendigo havia segredado. E a velha senhora então abriu um sorriso. No mesmo instante mandou que levassem com cuidado os dois passarinhos e soltassem nas árvores daquela praça. Os empregados não estavam entendendo mais nada, só sabiam que a senhora estava mudada, mais alegre e conversando com todos. Espanto maior foi quando ela chamou a arrumadeira e disse: "Limpe a arrume o quarto mais bonito que minha neta vai chegar amanhã".
E na manhã seguinte, assim que o sol se firmou bem bonito no céu, dois passarinhos surgiram voando e sentaram no umbral. A velha olhou apressada para ver se enxergava a menina dos olhos d'água, mas nada. Um minuto depois ela apareceu sorridente a acenando para os passarinhos. A velha acenou de volta e pediu que abrissem os portões para a dona dos passarinhos entrar.





Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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