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quarta-feira, 21 de julho de 2010

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 52

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 52

Rangel Alves da Costa*


Como é difícil a vida dos que vivem ilhados pela imposição do medo, do desamparo e da incerteza, pensava Lucas, enquanto juntava os cacos, como se dizia por lá. E medo pelo terror espalhado e a segurança que nunca se tem; desamparo por não poder contar com a proteção mínima daquilo que se deveria esperar; incerteza pela dúvida do que poderá ocorrer agora, mais tarde, sempre...
Acrescido a isso o fato de que a impotência estava chamando a violência. E somente Deus sabe quais os instrumentos eficazes de justa violência que devem ser usados contra as armas mortais da violência gratuita. Não matar, mas também não morrer. Seria pecado o homem proteger sua vida acima de tudo, acima de todo o mal, acima de sua jura de não violar princípios?
Sem que lembrasse de ter deixado a bíblia aberta em cima do sofá, mesmo assim ela estava lá como se chamando para ser lida em alguma coisa, pois mesmo com o vento entrando pela porta aberta as folhas não se moviam, como que silenciosamente tristes também. E os olhos de Lucas atenderam o chamado, naquilo que estava sendo mostrado pelo quinto capítulo do livro da Sabedoria:
"Então, com grande confiança, o justo se levantará em face dos que o perseguiram e zombaram dos seus males aqui embaixo. Diante de sua vista serão presos de grande temor e tomados de assombro ao vê-lo salvo contra sua expectativa; tocados de arrependimento, dirão entre si, e, gemendo na angústia de sua alma, dirão: Ei-lo, aquele de quem outrora escarnecemos, e a quem loucamente cobrimos de insultos! Considerávamos sua vida como uma loucura, e sua morte como uma vergonha. Como, pois, é ele do número dos filhos de Deus, e como está seu lugar entre os santos? Portanto, nós nos desgarramos para longe da verdade: a luz da justiça não brilhou para nós e o sol não se levantou sobre nós! Nós nos manchamos nas sendas da iniqüidade e da perdição, erramos pelos desertos sem caminhos e não conhecemos o caminho do Senhor! O que ganhamos com nosso orgulho, e que nos trouxe a riqueza unida à arrogância? Tudo isso desapareceu como sombra, como notícia que passa; como navio que fende a água agitada, sem que se possa reencontrar o rasto de seu itinerário, nem a esteira de sua quilha nas ondas. Como a ave que, atravessando o ar em seu vôo, não deixa após si o traço de sua passagem, mas, ferindo o ar com suas penas, fende-o com a impetuosa força do bater de suas asas, atravessa-o e logo nem se nota indício de sua passagem; como quando uma flecha, que é lançada ao alvo, o ar que ela cortou volta imediatamente à sua posição de modo que não se pode distinguir sua trajetória, assim, também nós, apenas nascidos, cessamos de ser, e não podemos mostrar traço algum de virtude: é no mal que nossa vida se consumiu! Assim a esperança do ímpio é como a poeira levada pelo vento, e como uma leve espuma espalhada pela tempestade; ela se dissipa como o fumo ao vento, e passa como a lembrança do hóspede de um dia. Mas os justos viverão eternamente; sua recompensa está no Senhor, e o Altíssimo cuidará deles. Por isso receberão a régia coroa de glória, e o diadema da beleza da mão do Senhor, porque os cobrirá com sua direita, e os protegerá com seu braço. Por armadura tomará seu zelo cioso, e armará as criaturas para se vingar de seus inimigos. Tomará por couraça a justiça, e por capacete a integridade no julgamento. Ele se cobrirá com a santidade, como com um impenetrável escudo, afiará o gume de sua ira para lhe servir de espada, e o mundo se reunirá a ele na luta contra os insensatos."
Eis porque não estou sozinho, pensou em seguida. Mesmo na solidão, tenho um exército a meu favor. E os inimigos não sabem quais armas possuo, porém sou até mesmo forçado a temer por não saber quando chegarão a meu favor as armas da justiça do Senhor, enquanto os malfeitores já colocam os pés na minha fronteira, invadem meu terreno, olham para a minha solidão e derrubam as minhas portas. Se depois de violarem as janelas, os telhados e as paredes, o que pensarão em fazer em seguida? Tudo isso pensava Lucas, num misto de fé e de temor. Porém, com muito mais fé, que era o alicerce do encorajamento.
Quando já ia saindo para providenciar portas novas, que deveriam ser colocadas naquele mesmo dia, percebeu algo que pela agitação da manhã e pela visita dos policiais, não pôde observar mais cedo. Uma vaca, das poucas que haviam sido deixadas por seu pai, estava morta embaixo do pé de umburana, mais adiante da casa, onde gostava de sentar no tronco sombreado. Contudo, não havia sido morta por idade nem por mordida de animal, mas pelas mãos do próprio homem, ali deixadas no sangue que ainda escorria de sua barriga.
Invadiram meu terreno, olharam para minha casa e a minha árvore e avistaram essa vaquinha, derrubaram minhas portas e mataram meu animal. Já havia lido algo parecido num poema. Só que aquilo já estava se transformando num grito.


continua...





Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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