EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 33
Rangel Alves da Costa*
Passando por ruas cada vez mais estreitas, totalmente esburacadas e sem qualquer tipo de infraestrutura, aos poucos foram adentrando em locais onde a miséria se mostrava mais visível, mais estarrecedora e humilhante. Certamente que as pessoas que moravam ali viviam em condições subumanas, em situações que desafiavam a própria lógica do viver com dignidade, jogadas à mercê da sorte da vida e das imposições humanas.
O casal de idosos morava praticamente num barraco, numa casinha em cujas paredes estavam misturados o barro, papelões e tábuas. Quatro vãos apenas, com o fogareiro na parte dos fundos da casa, de lenha, no quintal, embaixo de um pequeno telhado e soltando fumaça que exalava um cheiro bom de café de pilão, colocado ali há poucos instantes.
Era um casal simpático, já envelhecido muito mais pelas durezas da vida do que pela idade, procurando a todo custo demonstrar felicidade. Talvez fossem realmente felizes, pensou Lucas. E mais contentes ainda porque estavam recebendo a visita do professor, como já diziam. Ofereceram o que tinham no momento, que era um café quentinho, logo aceito pelos dois de bom gosto. E que delicioso esse cafezinho feito na hora, do grão batido no pilão e encorpado feito seiva da natureza.
- Não arrepare em nós não meu fio, é que num só tempo tamo muito feliz e envergonhado. Há muito tempo que eu e o Sebastião fica matutando como era bom se a gente pudesse escrever carta pro nossos fio e também ler as palavra que eles mandasse de volta. Eles tão longe e a gente nunca fica sabendo de nada como eles estão, sem saber como tão nossos netinho, sem saber da saúde deles, nem nada. E tudo isso porque a gente nunca aprendeu as lição, nunca aprendeu a ler nem escrever. Isso era coisa pra ter sido há muito tempo, quando a gente ainda tava na mocidade, mais num pudemo porque tinha de trabaiá pra ajudar a famia. Ou a comida ou a escola, e aí a gente cresceu desse jeito, ignorante das letra, sem saber fazer nem um "o" cum copo... – Relatava dona Marieta, cabisbaixa e meio envergonhada, quando foi interrompida por Lucas.
- Mas não precisa ficar assim não dona Marieta, pois chegou o tempo certo para aprenderem a ler e escrever. Mesmo que seja pouquinho, mesmo assim vale a pena conhecer as letras, rabiscar algumas palavras para quem se gosta e ler o que as palavras dizem, o que os outros querem dizer. Tem uma palavra que a gente só usa quatro letrinhas para escrever, quatro letrinhas apenas: "a", "m", "o", "r", que juntando tudinho forma a palavra amor. Agora vocês imaginem o significado enorme que possui essas quatro letrinhas, o significado para a gente escrever, para a gente ler e principalmente para a gente sentir. Além disso, entendendo o que dizem as letras e as palavras a gente sabe ir para onde quiser, comprar o que a gente quiser, viajar para onde quiser, e não vai viver perguntando aos outros o que está escrito ali ou acolá e nem vai deixar ser enganado por ninguém. E sabendo escrever então, aí é que tudo fica muito mais bonito, pois a gente mesmo pode escrever no papel o que sente no coração e mandar pra quem a gente gosta. Já imaginou, dona Marieta, a senhora escrevendo um bilhetinho para o seu neto?: Venha me ver meu netinho, que vovó tá com saudade de você...
Foi quando seu Bastião, como preferia ser chamado, foi dizendo:
- Eu vou achar é bom de ler o que aqueles político mentiroso escreve por debaixo dos retrato dele, aí isso eu quero saber sem ninguém me dizer. Vou gostar também de sentar na cadeira de balanço com um jornal na mão, nem que seja já passado, que só é pra ver o que ele diz com tanta letrinha miúda. Certa feita eu até fui me parar num lugar errado porque tive vergonha de perguntar o que tava escrito no vidro da marinete. Ia pro norte, acabei embarcando pro sul. Só isso já dá pra ver a importância dessas tal de palavra – E virando-se mais para Lucas, perguntou – E quanto é que o professorsim vai cobrar da gente que é pra ver se nóis ainda aprende ao meno aprende ajuntar e entender essa palavra?
Emocionado, Lucas respondeu:
- Vou cobrar apenas que vocês assumam o compromisso de querer aprender. O restante será tudo de graça e até com caderno, lápis e livro que vou doar pra vocês. Quero também que vocês passem lá onde moro, que já sabem onde fica, façam uma visita ao barracão construído pela meninada – apontando e sorrindo para Paulinho – e então conversaremos sobre os dias melhores para vocês aparecerem por lá para estudar, tudo em conformidade com o tempo que vocês tenham, sem atrapalhar em nada. Estamos certos assim?
Antes de saírem, dona Marieta insistiu para que levassem uma porção de doce de cabeça de frade. Paulinho cutucava o amigo para que aceitasse, então Lucas recebeu o pequeno embrulho e saíram. Caminharam um pouco mais quando o menino fez uma pergunta que Lucas precisava urgente se fazer, daí a surpresa e até espanto:
- Como você vai viver e se manter agora que está desempregado?
continua...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário