Rangel Alves da
Costa*
Antes de
tudo, urge repassar uma informação para evitar que ponta de pedra e espinho
pontudo fira a sola do pé e atrapalhe a caminhada pelas estradas adiante.
Informação importante, pois se conta nos dedos quem sabe o que seja um roló. Na
cidade grande, talvez um bicho de sete cabeças. Noutros lugarejos, talvez uma
estripulia qualquer desde muito desaparecida. Nem mesmo no sertão o roló é
conhecido por todos. Somente pelos mais velhos, aqueles que faziam uso e
necessidade nos tantos afazeres matutos.
Roló até
que parece ser um nome esquisito, coisa estrambólica mesmo. Contudo, nada mais
que a própria feição sertaneja na sua originalidade maior, pois tão nordestino
e caboclo como o chapéu de couro, a sela, o estribo, a cilha, o chicote, a
cabaça, a cuia, o alforje, o aió e o embornal. Certamente que estava nos pés
dos primeiros desbravadores das matarias, dos primitivos curraleiros, dos
antigos caçadores, de toda uma gente primeira que tinha de suportar as durezas
das veredas cortantes e dos caminhos tomados de pedras e tocos de paus afiados.
E não saiu mais do pé do sertanejo.
E não saiu
porque nem todo sapato ou chinelo consegue suportar as asperezas da terra e os
tantos percalços da luta de todo dia, já desde a madrugada escura. Feito de
couro cru, sem alisamento nem enfeitação, o roló nada mais é que o sapato do
autêntico sertanejo nas suas lides debaixo do sol e da lua. Quando novo, assim
que sai das mãos do coureiro, provoca certa estranheza pelo seu cheiro forte de
couro curtido, mas nada que a labuta não transforme em aroma. E quem não haverá
de sentir perfume no barrufo da chuva caindo sobre a terra, no cheiro da palma
sendo pinicada, no leite da vaca caindo já no prato de estanho já com tiquinho
de farinha?
Bem assim
com o roló, que se torna tão amigo do homem quanto o cachorro perdigueiro e o
velho alazão de vida e vaqueirama. Possui a cor da terra sertaneja quando de
recente feitura, mas com o passar do tempo, com os usos e atropelos, então vai
se tornando na mais pura feição cabocla: cor esturricada de sol, no
avermelhamento do barro queimado e do massapê, cheirando a suor e a tronco de
baraúna e umbuzeiro. Quanto mais desgastado fica mais ganha firmeza e cor. Por
isso tão inseparável do homem e de sua história desde que teve de se proteger
para não se lanhar.
Assim era
o roló de Zejoão, celebrado por toda a região pelos feitos e pela fama de ter
feito muito mais. Figura lendária sertões adentro, deixou no rastro de
existência tanto a maestria nos ofícios que lhe eram confiados como afazeres
outros até hoje só acreditados por alguns. Os feitos na vaqueirama, na pega de
bicho brabo, na toada e no aboio, na caçada, na gestação da sobrevivência,
estes não podiam ser contestados, pois confirmados de geração a geração, mas
outros sempre se entremeavam de dúvidas. E assim porque também causos e mais
causos dizendo de seu ofício de coiteiro, de cabra de mando de coronel e até
lobisomem nas escuridões da quaresma.
Além da
fama, de sua história ainda permanece o roló pendurado num pé de parede, lá
pelas bandas da casa velha. Relíquia que ninguém ousa tirar dali, marcada para
desaparecer somente juntos aos escombros do barro e cipó, na verdade não passa
de uma lembrança carcomida pela idade, já quase sem jeito daquilo que um dia
foi um sapato de couro cru. Certa feita, um parente tentou jogar fora o roló e
então um vizinho logo acorreu para declarar guerra a todos e ao mundo se aquela
desfeita fosse levada adiante. E esbravejou: Mando chumbo em quem tirar esse
roló daí, e mais ainda se jogar fora.
Até que o
vizinho não deixava de ter razão em deixar lá no cantinho aquela relíquia,
principalmente pelas histórias guardadas naquele solado. E eram muitas, coisas
de acreditar e outras de não dar a menor confiança, mas que mesmo assim foram
sendo repassadas como verdadeiras através dos anos. A verdade é que muita gente
jurava ter sido Zejoão quem tinha dado um nó no rio numa época de seca grande e
fome ainda maior. Sentindo o povo prestes a morrer, ele se dirigiu até a
beirada do São Francisco, lá pelas bandas de Curralinho, repetiu por sete vezes
uma reza forte e logo as águas pararam. Com o nó dado, os peixes ficaram
aprisionados à espera dos famintos da região.
Noutra
feita, Zejoão cismou de ajudar seu amigo Lampião numa empreitada das mais
difíceis. E fez tudo sozinho. Foi assim. Tendo conhecimento de que a polícia
volante se encaminhava para o coito cangaceiro, ele logo correu e foi avisar ao
Capitão. Este quis antecipar o ataque, porém foi impedido pelo amigo, que disse
que daquela vez não se preocupasse que tomaria conta de tudo sozinho. E tomou
mesmo. Correu por dentro do mato até encontrar a volante. Fingindo medo, foi
logo dizendo: Avistei Lampião logo ali e tava junto com mais de duzentos
cangaceiros.
Então a
volante recuou para buscar reforço, pois seria morte certa aquele
enfrentamento. O bando, em número menor que o da volante, já se distanciava
àquela hora, e salvo pelas proezas de Zejoão.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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