Rangel Alves da Costa*
Assim que abriu a janela, logo avistou no
umbral um embrulho de papel qualquer, e amarrado com cordão qualquer. Tudo
qualquer porque tudo tão antigo que não se poderia dizer com certeza se papel de
pão ou cordão de linha. A camada de poeira por cima indicava o longo tempo de
embrulho. Mas estava lá, para surpresa da mocinha.
Não temeu o encontro, apenas ficou sem compreender
a presença do objeto. Mesmo sem tocar, soprou a poeira e não avistou nada
escrito, nenhum endereçamento. Mas pelo formato logo percebeu que se tratava de
algum livro. Então resolveu acabar com as dúvidas e cuidou de desfazer o laço.
E não precisou de qualquer esforço, pois o cordão logo se desfez em pedaços.
Foi afastando cuidadosamente o frágil papel para avistar: O Diário dos Peixes e
das Flores.
Ora, ora, mas que coisa estranha, pensou a
mocinha. E mentalmente foi dizendo que pelo título deveria ser algum escrito
sobre botânica e zoologia. Foi passando os dedos sobre a capa, tocando no
contorno das letras douradas e desenhadas à mão, sentindo na pele uma estranha
sensação de familiaridade com aquele título. Mas achou melhor não pensar muito
sobre isso, pois se dizia ser um diário sobre peixes e flores, então sobre
peixes e flores era o seu conteúdo.
Levantou o escrito e diante do olhar não teve
dúvida que se tratava de um diário. Restava somente folheá-lo para conhecer o
que ali estava descrito. E imaginou que logo na primeira página deveria ter um
desenho bonito de peixes e flores. Mas ao folhear se tomou de máximo espanto.
Ao invés de qualquer espécie animal ou vegetal, o que avistou foi o seu rosto
desenhado. Estava debruçada no umbral da janela como costumeiramente fazia.
Com feição entristecida, olhos poéticos e
mirando um ponto qualquer adiante, retratava fielmente o jeito de ser da
mocinha todas as vezes que abria sua janela para os pensamentos, sonhos e
quimeras próprios da idade. Um desenho singelo, um retrato sem retoques daquela
que mesmo fingindo felicidade não passava de uma pequena flor orvalhada. Mas
algo, desenhado nos dois cantos inferiores da figura, não deixava de chamar
atenção: Um aquário com dois peixes e uma roseira com duas flores.
Mas o que as flores e os peixes têm a ver
comigo, se indagou intimamente a mocinha. E logo virou a página para se
inteirar do restante do conteúdo. Acima da página, com letra bonita desenhada,
apenas “Querido diário”. E logo abaixo, num belíssimo manuscrito:
“Querido diário. Hoje, numa data qualquer,
tenho a dizer muito além do que tenho escrito nos meus dias solitários e nas
minhas noites vazias. Hoje vou falar sobre a vida: a vida das flores e dos
peixes.
Sim, sobre a vida das flores e dos peixes, e
uma vida igual aquela avistada nos jardins primaveris, nas estufas bem zeladas
e nos buquês perfumados de amor. E também a vida avistada em profusão nas
espécies que povoam os mares, os rios e as fontes, raras e tão preciosas como
em todos os peixes das águas da existência.
Eis que há uma flor na sua janela. E também a
flor no olhar, no sorriso, na face. E flores que não dependem das estações para
brotar e florescer, para encantar as manhãs e os olhares de todo instante, pois
no jardim sempre verdejante de seu coração.
Eis que há um rio no seu olhar, um mar no seu
olhar, um oceano no seu olhar, e em tudo um leito de águas mansas e cheias de
espécies piscosas. Um cardume de felicidade, um ajuntamento de esperanças boas,
um bando de realizações, uma nuvem aquosa que incessantemente brilha e pulsa em
direção às nascentes.
E as flores e os peixes continuamente na sua
vida. Desde muito que se desfez do aquário e agora possui todas as águas do
mundo, e nos azuis o encanto vivo dos peixes que desejar. Desde muito que se
desfez do caqueiro e agora possui jardins inteiros com as mais belas flores já
nascidas sobre a terra.
Então por que vive assim, tão triste, tão
melancólica, tão lacrimosa? Mas não feche a janela. Saia desse umbral e vá
encontrar seus jardins e colher suas flores. Vá procurar seus azuis e navegar
com seus peixes. E será sempre feliz, muito feliz...”.
E muitas outras lições de vida, página a
página, no Diário dos Peixes e das Flores. Mas como surgiu ali e quem o
escreveu ninguém nunca saberá. Segredos existem que não devem ser revelados.
Jamais.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Um texto maravilhoso, cheio de poesia e encanto.
Parabéns.
Abraço
Graça
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