Rangel Alves da Costa*
A partir do instante que o sol se levanta,
parecendo ainda na madrugada, uma luta sem fim tem início. O homem da terra
sertão mal tem tempo de levantar e já começa a pensar na lide do dia.
Dependendo da estação, com a terra molhada ou na aridez da estiagem, vai
procurando o que fazer para garantir o pão de cada dia. Mas tudo sempre difícil
demais.
Vida dura, difícil, penosa, é a do sertanejo.
E chega um tempo que a situação piora ainda mais. Quando o sol vai secando e
devorando tudo, quando gente e bicho não têm mais o de comer nem o de beber,
então somente se entregando aos poderes divinos. Daí a religiosidade fervorosa
de um povo, a fé indescritível de uma gente que não se ajoelha senão perante o
sagrado.
As demonstrações desse fervor religioso estão
por todo lugar, desde a porta da frente à porta de trás. As paredes, mesmo de
barro caindo os pedaços, são tomadas de retratos santos, as mesinhas são
encimadas por rosários, livros sagrados, orações impressas, fitas de devoção,
imagens de santos, com lugar garantido para Padre Cícero e Frei Damião. Em
muitas casas o luxo maior é a imagem emoldurada de Nosso Senhor Jesus Cristo. E
quase sempre também da Virgem Maria.
A pobreza não permite que velas sejam
avistadas chamejando a qualquer hora nem todo dia, mas de vez em quando uma é
acesa ao lado do oratório, num canto do quarto ou numa dependência onde o vento
não sopre. Seja com vela acesa ou não, é com o imaginário sino das seis horas
da noite que o templo do coração abre suas portas e chama para a oração. É
nessa hora sagrada que as mãos calejadas se unem para o encontro maior com o
Deus sertanejo.
Uma gente bonita de se admirar, um povo
humilde em qualquer situação. Respeitoso demais, temeroso dos castigos divinos
também, faz da fé a força maior da existência. Traz enraizado, desde gerações
mais distantes, que nada é conseguido sem a ação divina, e se as coisas não
andam bem é porque Deus sempre age dentro do seu tempo. Sem a intencionalidade,
acaba vivendo segundo o Livro do Eclesiastes: Há um tempo pra tudo, tempo de
chorar e tempo de sorrir, tempo de plantar e tempo de colher, tempo de
entristecimento e tempo de alegria.
Eis a confirmação da esperança, um sinal de
perseverança e persistência, um compromisso sagrado, uma absoluta certeza que o
amanhã será de menos sofrimento. Conhece os dias e as noites, os acontecimentos
que sempre se repetem, as durezas da vida que se entrelaçam às forças de
sobrevivência. E o simples fato de não sucumbir de vez quando se alastra uma
seca voraz já comprova que há uma força maior de sustentação. Chega a ser um
pensamento conformista, despretensioso demais, mas que não deixa de ser
consequência da fé. Não obstante a certeza da luta que será vencida, ainda se
garante na prece, no rogo divino para que assim realmente aconteça.
A prece é tudo para o sertanejo. A constante
oração, a lembrança contínua de Deus, se assemelha a um manto protetor que
envolve todo o ambiente familiar e além. Reconhece a fragilidade do homem, o
seu instinto pecador, a teimosia de enveredar pelos caminhos mais tortuosos. E
somente Deus para afastar tudo isso, e por isso mesmo tanto se apega às forças
superiores, ao divino, aos anjos e santos. Por isso o beatismo, a ladainha, a
procissão, o terço, a novena. E tem uma prece pra tudo, desde a oração para o
mal não ultrapassar a soleira até a reza para o vento ruim não tomar conta do
corpo de um parente.
Naqueles corações entremeados de sofrimento e
esperança, não há hora mais sagrada que a da prece, da oração, da reza de
proteção, do agradecimento, da aproximação com a divindade. Reza-se pelos que já
partiram, pelos sofridos, pelos que necessitam de amparo urgente. Reza-se pela
saúde da família, invocando proteção, pelo afastamento de todo o mal. Reza-se
pela sorte da terra, pela sobrevivência, pelo fim da estiagem ou pela boa
colheita. Reza-se pelo simples rezar, como se o espírito tivesse a premente
necessidade desse diálogo de fé.
Seis da noite, ao badalar o imaginário sino
no coração, esta é a hora sagrada, a principal na crença e na devoção do povo.
Como se a hora fosse um limite entre o dia e a noite e os mistérios descessem
com a escuridão, então elege esse instante como o de maior profundidade para os
pequenos rituais das mãos se cruzando, dos sinais da cruz, da partilha do
coração em prece. Mas a oração está presente a todo o momento, a qualquer hora
do dia. Com as marcas do Cristo sofredor nas entranhas, a qualquer instante o
sertanejo pode ser avistado contando as contas de um rosário, balbuciando
baixinho, orando em silêncio.
Assim, depois do cair do sol e a chegada da
noite, no limite das seis, tudo é deixado de lado para o ofício sagrado.
Ritualmente, reza-se ao amanhecer e ao meio-dia, mas com maior devoção depois
do crepúsculo sertanejo. Então se perfaz a mais completa sagração sertaneja: as
mãos rudes, sofridas, subindo as escadas do céu através da oração. Sobem na fé
e descem na certeza do encontro com Deus. E assim sobrevivem na esperança de
dias melhores.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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