Rangel Alves da Costa*
Tomado de razão e de filosofia comum, alguém
já disse que a grandeza e as belezas da vida estão nos gestos e atitudes
simples de cada um no seu fazer cotidiano. No mesmo sentido a sentença
proferida nos tempos idos e desde sempre relembrada: O ouro da lua e a prata do
sol, riquezas de inigualável valor, adornam igualmente os seres da vida.
Contudo, brilham muito mais naqueles que possuem olhos para avistar além do sol
e além da lua.
O que isto significa? Sentimento, apenas
isto. Olhos que avistam apenas o sol e a lua avistarão somente e sempre o sol e
a lua. Mas olhos que procuram avistar além do simples clarão para enxergar a
beleza, a poesia e a força da luz, certamente que acabam fruindo na alma e no
espírito todo o mistério e pujança daquele ouro e daquela prata. Assim ocorre
com que avista com simplicidade, brandura, singeleza. Contudo, infelizmente,
nem todos possuem esse dom.
Mas muitos também o possuem, e quanto mais
vivendo e convivendo em lugares distantes, pacatos, onde o progresso voraz, o
desenfreado desenvolvimento e os modismos corruptores, mais se tornam próximos
da ainda existente poesia da vida. E ainda há um povo assim, uma gente
geralmente empobrecida, habitando nos escondidos do mundo, porém de uma riqueza
indescritível nos seus modos de ser e existir.
Muitos, sem conhecerem essa poesia da
existência, logo lançam olhares e conceitos preconceituosos. Então afirmam da
matutice, do primitivismo, do distanciamento do progresso. Ora, mas é
exatamente tal afastamento que permite a manutenção do bucolismo, da
simplicidade, da humildade, da singeleza da vida. É a pouca contaminação pelas
imposições culturais de outros povos que acaba preservando hábitos, tradições e
valores próprios.
Esse povo de raiz, cheirando a terra, tão
adornado de sol e de lua, convivente e amigo da natureza, do bicho e de todo
ser do seu meio, é apenas um povo que ainda retrata um modo de viver costumeiro
noutros tempos. É um povo de fé, de fervor religioso, trabalhador, esperançoso,
alegre e cativante, amigo e protetor. É um povo que lida na terra, no barro, na
vaqueirama. É um povo de estrada de espinho, de paisagem seca, de convívio com
mandacarus, facheiros e xiquexiques.
É também um povo que se desdobra para
sobreviver, para ter uma panela sobre o fogão de lenha, para ter água na moringa,
para que a filharada não permaneça se lamentando por falta de pão. Um povo que
acorda antes de o galo cantar e suporta o sol como sal da vida, que se encanta
com a lua como alento maior, que ora e agradece por tudo, ainda que o
sofrimento não possa ser escondido. Um povo assim ainda existe. Um povo
sertanejo, caboclo, de cuja história e luta não se pode esquecer.
O sentido de preservação parece enraizar
ainda mais a vida desse povo ao seu chão. Há ainda compadres e comadres, amigos
conversando ao entardecer debaixo das grandes árvores, gente que passa de
chinelo no pé, lenço na cabeça, roupa de chita, chapéu de couro ou de palha,
cocada pelas janelas, arroz doce pelas ruas. Ainda existem quintais, cajueiros
e mangueiras, bicho ciscando ao redor. Um antigo carro de bois descansa num
sombreado, um velho ajeita seu cigarro de palha nos beiços, a mulher estende a
roupa no varal.
A meninada, sempre descalça, sai correndo com
a bola murcha debaixo do braço. Joga bola, corre de cavalo de pau, espera a
chuvarada para correr sua nudez pelas ruas. A menina bonita, toda perfumada, de
cabelo de trança e batom na boca, se põe na janela feito uma princesa à espera
do seu encantado. A fofoqueira finge que vai varrer a calçada e fica andando de
lado a outro olhando a vida dos outros, do jeito que vão, com quem vão, com que
roupa estão.
As velhas senhoras e seus vestidos floridos
sentam-se confortavelmente nas calçadas a imaginar a vida, a rememorar, a
lembrar dos tempos idos, a falar sozinhas, a sorrir e a chorar. Num instante e
já estão gritando pro neto ter cuidado com aquela bola na vidraça de dona
encrenca. Mas o menino nem se importa, chuta ainda mais forte, corre mais ainda
e parece mirar bem no varal onde a roupa limpinha continua estendida. E a velha
se esquece de tudo, pois agora envolvida com uma lágrima cheia de saudade que
desce pela face.
Dali a pouco os habitantes vão entrando nas
suas casas, suas moradias, E não demora muito para subir pelo ar um cheiro
estonteante, gostoso demais, de café torrado. E que profusão de cheiros, um
tanto de cuscuz de milho ralado no quintal, de tripa sendo torrada, de bolo de
macaxeira saindo do forno. E talvez a noite, faminta como é, se apresse em
aparecer para saborear também um pouquinho daquilo tudo.
Eis a poesia de um povo. Versos escritos com
a tinta da terra, páginas nascidas nas folhas do tempo. Ainda é possível
encontrar esse livro aberto, tão rico e encantador como a própria vida desse
povo que o inspirou e preserva a escrita. E que assim seja para a eternidade,
ainda que haja a certeza que as traças mundanas não tardarão de se lançarem
ávidas sobre sua existência.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Que texto, gostei de ler!
Envio fraterno abraço
Nicinha
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