SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 2 de abril de 2015

QUANDO A SEMANA ERA SANTA


Rangel Alves da Costa*


A atual Semana Santa não passa de um feriado qualquer. Assim na grande maioria dos lugares onde o fim de semana mais extenso não tem outra serventia senão para festins, viagens e curtições. Na maioria porque em algumas povoações interioranas ainda se comunga do espírito da crucificação e ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo. Contudo, nada parecido com o fervor religioso de outros tempos.
O descuido ou o desuso com as práticas rituais da fé são consequências das transformações advindas no seio da sociedade. A sociedade atual, envolvida pelos modismos e negação das tradições, acaba relegando ao esquecimento até mesmo o compromisso com o fortalecimento da fé. Ora, num mundo onde o jovem sequer sabe o que seja uma celebração eucarística, uma novena ou até mesmo uma procissão, torna-se muito difícil que a ritualística da Semana Santa lhe tenha algum significado.
Hoje em dia, se falar em Semana Santa logo surge à mente duas coisas: o feriadão e a comida à base de coco. Tornam-se cada vez mais raros aqueles que conhecem os seus mistérios, que participam das missas, que ainda procuram sentir na alma um pouco do sofrimento de Cristo pelo próprio homem. Muito longe estão dos passos levando a cruz, da coroa de espinhos, da morte e do renascimento. Muito longe estão até de si mesmos, vez que possuindo apenas a leveza inconsistente do presente.
Ainda recordo de um povo e de suas histórias de Semana Santa na região sertaneja onde nasci. Nada mais é como antigamente, porém a tradição continua em muitos, principalmente com relação ao peixe, ao jejum e as sentinelas. Mesmo com o preço absurdo do pescado, muitas pessoas preferem uma sardinha enlatada a ingerir carne de gado, porco ou mesmo frango. É quase um jejum forçado pela ausência de um peixinho ao coco sobre a mesa.
Mas noutros tempos era muito diferente, e já desde a quarta-feira de cinzas. E até bem antes disso. Roupas eram escolhidas especialmente para o luto. Vestimentas de cor eram tingidas de preto para o luto nos dias sagrados. Vestidos longos, geralmente com mangas compridas, cobriam mulheres desde a quarta-feira. Muitas também usavam panos ou lenços pretos na cabeça, num luto obstinadamente fechado. Nem mesmo com os seus falecidos havia aquele rigor de enlutamento.
Também era costume não varrer a casa durante os três dias. A justificativa era de que o sofrimento do Senhor naquele período não permitia limpeza que proporcionasse qualquer feição de contentamento. A poeira e o pó eram o acúmulo dos males mundanos, da incoerência do homem sobre a terra, e cuja limpeza se daria como um renascimento do próprio Senhor para salvar o mundo.
O pai ou mãe logo emitiam severas ordens de obediência e respeito máximos aos dias sagrados. Ordenavam que os seus não ingerissem bebida alcoólica, não fumassem, não ouvissem música, não se mostrassem cheios de alegria e contentamento, não falassem palavrões nem namorassem. Não falavam em sexo, pois nome muito forte para ser pronunciado na ocasião, mas afirmavam que sequer imaginassem em corromper a carne com as ilusões mundanas.
Muitos jejuavam de modo tão severo que somente uma vez ao dia colocavam algum alimento à boca, mas sempre contendo coco. Peixe com coco, arroz de coco, feijão de coco, tudo contendo coco. Quem não jejuasse só podia comer alguma coisa que fosse feita com coco. Os espelhos eram devidamente encobertos com panos de luto para que ninguém se olhasse ou penteasse os cabelos. E quanto mais triste o semblante de cada um mais presente sua fé naqueles dias de dor e sofrimento.
No dia maior então a ritualística se redobrava. Grande parte do dia as mulheres, principalmente velhas beatas, se mantinham fechadas em seus quartos ajoelhadas com terços e rosários à mão, orando incessantemente. Após o anoitecer seguiam até a igreja onde permaneciam em sentinela até o amanhecer. E os cantos, as ladainhas, as rezas fúnebres, entoavam numa lamúria tão dolorosa como bela. Tudo na força de um povo, sua fé e tradição.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: