SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 1 de abril de 2015

NA TERRA DO VIRA-MUNDO


Rangel Alves da Costa*


Engana-se aquele que pensar que tudo acontece na normalidade rotineira dos dias, mesmo surgindo umas ou outras surpresas para contrastar com as mesmices. Não só as pessoas mudam rapidamente como as realidades ao redor. Contudo, situações existem que fogem à racionalidade, vez que ninguém consegue coerentemente explicá-las.
Assim aconteceu, por exemplo, na Terra do Vira-Mundo, um lugar de acontecimentos tão estranhos, tão sem pé nem cabeça, que mais se assemelham às histórias entremeadas de realismos fantásticos ou de maluquices mesmo. Digo que aconteceu só por uma questão de dizer, pois certamente aquele lugar e seu povo continuam vivendo nos seus mesmos modos inusitados em tudo que façam.
Abrindo as portas daquela realidade, que se diga, de antemão, que nenhum habitante pode ser qualificado como insano, doido, maluco ou qualquer coisa desse tipo, pois o que é anormal ou irreal para o forasteiro ali é tido como a coisa mais costumeira do mundo. Assim, apenas uma questão de compreender sem negar o jeito próprio de ser e conviver de um povo. Tal questão é muito recorrente em antropologia cultural.
Mas normal não é, a realidade é essa. Não pode ser visto como algo lógico e racional que as pessoas quase nunca conversem umas com as outras, mas a todo instante sejam encontradas falando sozinhas, sorrindo, gritando, enraivecidas, contentes ou passivas com as próprias palavras. Conversam com quem, tanto falam com quem? Por todo lugar existem indivíduos que conversam sozinhos, mas não daquela forma, onde o diálogo pessoa a pessoa é convertido numa interlocução de mão única. Ou não, pois certamente se dirigem às sombras, ao vento, à própria solidão, aos fantasmas dos antepassados.
Não é normal que a maioria das pessoas durma durante o dia e passe a noite inteira fazendo o que deveria ser feito nas horas ensolaradas. O dia claro, o vento soprando, com pelas paisagens ao redor, e as pessoas deitadas a sono solto. Por isso mesmo que as casas são geralmente avistadas com portas e janelas fechadas, as ruas se tornam desertas e poucos são aqueles, com ares de sonolência, que perambulam de canto a outro. Estes seriam os errantes do dia, lembrando os noctívagos debaixo da lua cheia.
Mas quando o entardecer vai embora e as sombras da noite começam a descer, então tudo parece um amanhecer. Já escuridão e as portas são abertas, as casas são tomadas de gente, as pessoas saem para as calçadas, seguem pelas ruas, tomam as praças. Tudo aquilo que deveria ser feito durante o dia toma sua normalidade. Em plena escuridão e pessoas trabalhando nos campos, nas construções, nas lavagens de roupas. Como não há serviço público, prefeito, delegado, juiz ou qualquer autoridade, tudo é responsabilidade de cada um.
É também após o anoitecer que os bichos de criação saem dos seus quintais, matos e poleiros, e se misturam às pessoas nas ruas. E dizem que também falam, ou falam mais que as pessoas do lugar. Galinha não cacareja, mas diz o que quer. Galo não canta, mas ao cair da noite grita alto para dizer que já está na hora de acordar. Jegue não relincha, levando a maior parte do tempo a dizer palavrões. Não raro que bodes ou vacas sejam avistados murmurando segredos às pessoas mais jovens e mais afoitas.
Em nenhuma panela será encontrado qualquer tipo de carne. O povo da Terra do Vira-Mundo é vegetariano de nascença. Ao invés de quilo disso ou daquilo, o que se tem são folhagens, raiz e casca de pau, brotos, frutas e até capim. Já os animais exigem feijão, farinha, arroz e café e carne, mas somente de bichos de outro lugar. As pessoas não bebem, mas os animais são chegados a uma aguardente. Por isso mesmo que não sossegam enquanto não tiverem à disposição uma boa vasilha cheia de cachaça com raiz de pau.
Não sei se é bom ou ruim viver assim, apenas sei que é um jeito diferente demais de viver. Ao estranho que chega e ao forasteiro desavisado tudo causa uma estranheza demais. Na primeira vez que andei por lá até fiquei sem acreditar, principalmente em ter à minha frente pessoas completamente peladas, sem uma única peça de roupa por cima. Sim, ali ninguém se veste, todo mundo vive permanentemente nu.
Já retornei algumas vezes e até penso em fixar moradia. O problema são os hábitos, os costumes, as estranhezas demais. Na verdade, bicho parece mais com gente do que o próprio ser humano. No meu caso, acaso decida morar ali, certamente será como um bicho. Só assim irei beber e comer.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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