Rangel Alves da
Costa*
Que
acreditem ou não, mas a verdade é que de vez em quando encontro e proseio com
Jorge Amado, num tempo mais recente ou mais distante. Haveriam de dizer ser
impossível encontrar uma pessoa com mais de treze anos de adeus. Mas digo que
não. E repito que o reencontro todas as vezes que necessito alentar minha alma
com a memória nordestina contada por esse baiano de sangue e alma sergipana. E
nada melhor que o próprio mestre para falar sobre sua pujança criativa, num
misto de ficção e memorialismo.
Não é
coisa do meu tempo, mas já avistei Jorge Amado saindo da casa fortificada do
Coronel João Amado de Faria, seu pai, lá pelas terras sangrentas das disputas
cacaueiras. Era apenas um rapazote cheio de planos e sonhos, mas sabendo que
seu ideário comunista seria de difícil aplicabilidade num país de carnaval. E
quando se iniciou na escrita escolheu O País do Carnaval como título de seu
primeiro livro.
Então me
dizia ele, tempos depois, ao sopro da ventania cheirando a pescado do Recôncavo,
que abdicava da fantasia literária para abraçar apaixonadamente a história do
povo, da gente suada e trabalhadora, da gente do cais e dos prostíbulos, da
gente das ladeiras e dos terreiros africanos, da gente escondida nas distâncias
do mundo, de uma gente tão bela que está em cada e diante de cada um.
E os
coronéis, perguntei a ele. Por que muitos de seus livros vestem linho branco,
moram em casarões, são donos de bicho e de gente, são senhores absolutos do
mundo do cacau, da política, dos cabarés afrancesados, dos jagunços e das
tocaias? Esta foi a exata pergunta. De início Jorge silenciou para em seguida
passar a mão naquela cabeleira esbranquiçada e dizer que o coronel povoou a
vida baiana, quiçá a nordestina.
E
continuou: A história nordestina também foi escrita pelo coronel. Mas o que nem
todos conhecem, e isso eu faço questão de contar em meus livros, é que o
coronel só se fez poderoso – principalmente na região cacaueira da Bahia –
depois de vencer a batalha da vida. Ora, quase todos chegaram às terras
inóspitas atrás do sonho de pedaço de chão. E disputou, na bala e na tocaia, o
seu quinhão de sobrevivência. Mas depois, como a ambição nunca se contenta com
o conseguido, aqueles homens foram guerreando uns com os outros, matando,
expulsando, até que as terras fossem acrescidas e os imensos latifúndios
formados. Desse modo, o bonito da história do coronel é a sua saga para chegar
aonde chegou e alcançar o poder que alcançou. Tudo na emboscada, no sangue, na
guerra sem fim. E tendo ao fundo, sobressaindo-se ao sangue jorrado, o dourado cativante,
misterioso e também maldito do cacau.
Estava ao
lado de Carybé experimentando licor de pitanga na região do Mercado Modelo. E
dele ouvi que ali também o seu mundo, o mundo de sua escrita e de uma raiz que
se estendia por todos os recantos baianos. Essa vida e esse jeito de viver,
esse povo tão santo e pecador, tão trabalhador e espertalhão, tão católica e
terreirista, é o povo que abriu a porta dos meus livros e fez o quis sem pedir
licença. Os meninos que andejam de canto a outro, que já os nomeei de capitães
da areia, os vendedores de rosários e miçangas, as baianas dos tabuleiros, as
prostitutas das casinholas mais adiante, são mais que personagens para mim, eis
que filhos e frutos de uma realidade das ruas, dos mercados, do cais, ladeiras,
quintais de tambores, no leito das águas.
Dias
atrás, após mais uma vez passar os olhos sobre alguns de seus romances, tomei
nota de alguma coisa e fui diretamente à casa da Rua Alagoinha, no Rio Vermelho.
E dele ouvi: Tem razão. Meus romances são sem floreios, o que tenho de dizer o
faço pela boca do povo. Se o povo fala assim eu não posso rebuscar a linguagem do
povo. E também tem razão quando afirma que tenho predileções por alguns
personagens. Mas sua pergunta era outra. Então digo que ao lado de mulheres
guerreiras, como Tereza Batista, Tieta e Gabriela, ou de outras apenas
prendadas como Dona Flor, também gosto de minhas prostitutas, cafetinas e
virgens prometidas. Gosto do povo de atabaque e tambor, das tendas e dos
milagres, dos feitiços e crendices do outro mundo. Gosto dos coronéis, dos
jagunços e matadores, das mocinhas tímidas e sonhadoras como Malvina. Gosto
desse mundo sem véu onde reinam os Badaró, os Silveira, uma gente do quilate de
Ramiro Bastos e Amâncio Leal. Gosto de gente como Maria Machadão, Caolha e
todas aquelas que passavam a perna nos velhos senhores do cacau e do sangue.
Que não se
espante. Não é difícil reencontrar Jorge Amado e prosear com o amado Jorge. Não
precisa ouvir vozes do outro mundo. Os portais do encontro estão na minha
estante. Em cada livro o mestre contando a sua própria história e a saga de um
povo entremeada de tocaias grandes e amores cheirando a cravo e canela. E tudo
com a cor do cacau e cheirando a mar grande que se torna infinito.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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