Rangel Alves da Costa*
Durante muito tempo e até o início dos anos
80, alguns municípios e povoações do Alto Sertão Sergipano do São Francisco,
principalmente Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo e Canindé do São
Francisco, ficavam quase que completamente isolados da capital. O difícil
acesso, num percurso de cerca de duzentos quilômetros da capital sergipana, se
dava por estrada de chão esburacada e perigosa. Era uma viagem penosa, difícil,
com nunca menos de cinco horas dentro de um ônibus velho e vagaroso demais.
Situação difícil também para aqueles
possuidores de veículos próprios. Os problemas maiores eram sempre a
imprestabilidade da estrada e a distância da capital. Comumente uma viagem
cansativa, torturante, em meio aos solavancos, calor e miséria de todos os
lados. Sofrimento também aos feirantes que no sábado tinham de subir em paus de
arara para a aquisição de farinha, frutas, feijão e outras mercadorias na feira
da Boca da Mata (Glória). Retornavam ao entardecer para o suprimento da feira
no outro dia. Assim aconteceu com Zé de Iaiá, Delino, Zé Preto, Mané Azedim,
Pedro Bola, Florêncio e tantos outros.
Tal situação provocava imensos transtornos à
população, principalmente quando surgia um grave problema de saúde para ser
resolvido. E foi também por causa disso que por muito tempo todo parto de
mulher sertaneja ou se dava pelas mãos das velhas parteiras ou na cidade
alagoana de Pão de Açúcar, no outro lado rio, seguindo também por uma estrada de
chão, porém muito mais curta. As dores do parto tinham de ser suportadas até a
travessia do rio na balsa ou canoa. Pouco tempo depois o menino já estava
chorando nas mãos habilidosas do Doutor Djalma. O que este senhor fez pela
população sertaneja é algo indescritível.
Desse modo, era o sertanejo praticamente
acuado na sua distância e escondidos, sem ter acesso digno aos grandes
centros. Quem não possuía transporte
próprio nem seguia até Curralinho, na beirada do rio, e de lá tomava transporte
fluvial até Propriá e daí rumava até Aracaju, o jeito mesmo era se submeter à
longa e cansativa viagem na velha e famosa marinete de seu Vavá. Era da Viação
São Pedro, mas ninguém avistava o velho ônibus senão com a feição de seu
motorista mais usual: Seu Vavá. Que homem generoso e servidor e, por isso mesmo,
jamais poderia ser esquecido na memória sertaneja.
Seu Vavá, homem simples, motorista
experiente, sempre bondoso e amigueiro, todos os dias fazia o longo percurso.
Saía às cinco da manhã da rodoviária velha de Aracaju, passava por municípios
como Maruim e Siriri, parava em Nossa Senhora das Dores para o lanche ou
ligeiro café, seguia rumo a Feira Nova, parava novamente em Nossa Senhora da
Glória, em seguida tomava a pista em direção a Monte Alegre até entrar nas
terras de Poço Redondo. Já estava em torno das dez da manhã, pois próximo às
dez e meia despontava pela Rua de Baixo, atual Av. Alcino Alves Costa. À uma
hora da tarde dava início ao mesmo percurso de retorno. Chegava à capital
depois das cinco.
A chegada da marinete de Seu Vavá era uma
verdadeira festa na cidade, principalmente se nas proximidades da Festa de
Agosto, quando sertanejos chegavam do Rio ou São Paulo para visitar familiares.
Quando o ônibus dobrava a esquina da casa de Dona Dóce e adentrava na Praça da
Matriz, já encontrava o sombreado da árvore defronte à casa de Tia Cordélia
completamente tomado de gente aflita, nervosa, em tempo de desmaiar. Tudo num
misto de ansiedade, expectativa e alegria. Mas também de sofrimento quando a
porta da marinete se abria e a feição esperada não surgia para o abraço.
Quantas cenas memoráveis se deram com a
chegada da marinete e a descida dos sertanejos com ares, vozes e trejeitos
sulistas. Quando homem, geralmente com calça boca de sino, com nesga, camisa
florida, cabelo à moda black-power ou repuxado na brilhantina, imensos anéis
sobre os dedos, e a saudação com um sotaque tão esmerado de causar inveja a
qualquer carioca ou paulista. Com a mulher não era diferente, só que esta
descia com óculos imensos, tomando quase todo o rosto, toda pintada e adornada
de bijuterias reluzentes, sempre trazendo à mão uma frasqueira. Situações
verdadeiramente cinematográficas, mas era assim que ocorria.
Mas não com todo mundo. Difícil acreditar,
mas quanto mais tempo a pessoa tinha de vivência no sul mais retornava cheia de
simplicidade e carinho, ainda que já economicamente fortalecida. Eram visitas
de reencontros, saudades, renovação dos laços familiares. Sentia-se que ao
invés de transformá-los o distanciamento ia produzindo mais apego aos seus e
amor ao sertão, mais humanismo e valorização de suas raízes.
Era, pois, Seu Vavá o responsável pelas
chegadas e partidas de toda essa gente sertaneja. Mas não era nem uma viagem
comum nem uma marinete comum. Muita gente reclamava porque Seu Vavá, metido a
namorador, parava demais na estrada. Realmente tinha algumas namoradas no
percurso, principalmente uma em Sítios Novos. Mas parava muito mais para
atender à população sertaneja que enviava carta, bilhete, dinheiro, queijo,
galo, capão, melancia e abóbora, o de tudo. Era apenas motorista, porém
servindo como carteiro, emissário, transmissor de recados. E gente assim não
existe mais.
Em Poço Redondo e região muitos ainda
recordam de Seu Vavá e sua marinete. Em 74 subi nela quando vim estudar na
capital. Ainda rememoro o ônibus se afastando lentamente e eu quase naufragando
nos olhos d’água.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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