SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 19 de abril de 2015

AS BEATAS CUIDANDO DA VIDA ALHEIA


Rangel Alves da Costa*


Elas são as primeiras a chegar e as últimas a sair da igreja. Mas nunca sentam nos bancos da frente, próximo ao altar e ao vigário, preferindo do meio pra trás ou em local que permita uma ampla visão do ambiente. E assim porque precisam avistar quem entra, com que roupa está, se é pessoa conhecida ou não. Ademais, será sempre útil que a pessoa possa ser comentada sobre alguma coisa. Do contrário não há como fofocar sobre a vida alheia.
Quem as avista e não as conhece logo supõe serem apenas duas senhoras já envelhecidas e com todas as características de fervorosas beatas: xales à cabeça, roupas compridas à moda antiga, livros sagrados à mão, rosários como companhia, feições compassivas e olhos tingidos de fé. Atravessam ruas com passos lentos e assim vão entrando na igreja. Fazem os cumprimentos sagrados diante do altar, sentam-se como duas cansadas e se lançam aos terços e rezas.
Os dedos se preparam para passar as contas dos rosários e as bocas para dizer baixinho as rezas sagradas, próprias para o momento. Mas quando já estão prontas para o primeiro Credo, eis que a chegada de alguém ou um fato ou outro logo chama a atenção. Então lançam os olhares bisbilhoteiros pelos arredores e enchem as bocas maldosas com palavras que nada têm a ver com qualquer reza. Mas ainda assim conseguem misturar tudo e passam a fofocar baixinho enquanto fingem orações
“Creio em Deus Pai todo-poderoso, criador...”. E pausa a oração para dizer: “Você viu a roupa da sirigaita. Toda vestida no luxo como se fosse madama de verdade. Uma quenga, isso sim. Uma quenga se querendo passar por mulher séria. É até pecado uma coisa dessa aqui na igreja”. E prossegue: “criador do céu e da terra...”. Mas não vai além porque a outra também já interrompeu seu terço para fazer observações sobre a vida alheia.
“Você tem razão, mas não é só ela não. A bem dizer, se fosse contar aqui quem já tá à beira da fogueira do pecado só restaria nós duas. A igreja vive cheia de pecadora disfarçada em cristã. Sem ter isso como maldade, mas penso eu que só vem aqui para ver se diminuem o pecado da carne e a corrupção da alma. Veja aquela ali, retocando a maquiagem diante de Deus. Vai-te pecadora, vai-te queimar no fogo da geena...”.
E prossegue, sem mais recordar onde havia parado: “Desceu à mansão dos mortos; ressuscitou ao terceiro dia; subiu aos céus...”. Mas tem de parar para ouvir as considerações da amiga: “Olhe aquela ali comadre, aquela de roupa enfeitada de azul e grená. Dinheiro pra comprar um vestido desse ela não tem, isso eu tenho certeza. É viúva e vive da pensão recebida do falecido. Coitado, morreu novo, e dizem que foi uma morte triste. Ia passar por uma porta e as pontas, os chifres que ela botava nele, acabaram enganchando na portada e ninguém chegou pra ajudar. Morreu ali mesmo o coitado, chifrudo como sempre viveu...”.
“Brincadeira, né comadre, mas que ela botava chifre nele todo mundo sabe. E agora certamente anda com um e com outro, levantando a saia pra quem oferecer tostão. Esse vestido comprou assim, com dinheiro de macho. Uma pessoa assim jamais terá salvação. Ou ela pensa que missa limpa a alma de rapariga? Aliás, comadre, e sem querer falar mal de ninguém, aqui vive cheio de rapariga. Olhe aquela ali...”. “Qual comadre, a de brinco graúdo ou a de cocó?”. São forçadas a prender uma gargalhada, se benzem e prosseguem nas rezas, e agora outra totalmente diferente.
“Bendita sois vós entre as mulheres, e bendito é o fruto do vosso ventre...”. E num instante uma dá um beliscão na outra diante do surgimento de um fato inusitado. E fala: “Olhe, olhe comadre. A comadre tá vendo o que eu tô vendo ou será que me engano? A sirigaita não tem um pingo de vergonha na cara, levantou e seguiu diretamente pra sacristia. Agora se confirma o que todo mundo diz: ela tem um chamego com o vigário”. Fingindo espanto, a outra ajunta: “É o fim do mundo!”. E ainda se ouve na prece esparsa: “Em nossos olhos que se derramam num vale de lágrimas...”.
Assim as duas beatas. E todo santo dia assim. Mas basta que uma desaparte da outra que uma joga a outra nos portais dos pecadores: “Aquela alma impura, fofoqueira, não tem salvação. Cuidai de mim ó Senhor, que sou tão devota e cheia de virtudes cristãs”.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: