Rangel Alves da Costa*
Não sei se como justa comparação, mas alguém
já asseverou: lixo de rico é igual a muita gente que só tem a aparência, pois
por dentro é imundície comum. Já outro, dando maior ênfase à sua afirmação,
disse: lixo e morte possuem o mesmo sentido na embalagem, eis que depois de
algum tempo, e seja rico ou pobre, será sempre melhor não abrir a sacola para
ver o que tem dentro.
E um ex-catador de lixo, depois transformado
em catador de siri no quintal de casa, ensinava que o pobre, por mais
necessitado que seja, deve evitar fazer três coisas na sua catação de
sobrevivência. A primeira é jamais pensar que vai encontrar resto de comida boa
em lixo de rico, pois é o saco mais pobre que possa existir. A segunda é jamais
pedir esmola a gente rica, porque é quem mais tem, porém nunca leva dinheiro no
bolso. E a terceira é jamais ficar zanzando por muito tempo perto da calçada,
pois além de pobre e descabido no lugar, logo será tido como perigoso marginal
que está planejando sequestrar o cachorro da madame.
Dizia ainda que muito catador se engana em
pensar que fuçar lixo de rico é garantia de sorte grande. Em primeiro lugar
porque parece que rico não come e só toma remédio. Na sua sacola nunca vem um
resto de quentinha ou mesmo um resto de macarronada. Só vem embalagem vazia de
remédio, de comprimido, seringa, garrafa e lata. Morre de fome quem esperar
achar ali um resto de pernil, um naco de carne boa, uma comida de forno. Asa ou
coxa de frango nem pensar. Rico parece que é sempre vegetariano, só bebe ou
mastiga folha em comprimido. Por isso mesmo é que vive sem cor, sem vigor, sem
feição com sustança. É um povo adoentado e deprimido, principalmente porque não
tem coragem de se lambuzar diante de um prato suculento. Por consequência, o
seu lixo é verdadeiro lixo.
Apenas raramente é que seu lixo traz alguma
surpresa, algo que faça merecer a sina de fuçar porcarias sob ameaça de
brutamontes que vigiam os altos muros. Acaso a sacola contenha roupa,
certamente que será quase nova. É que o dono emagreceu demais por não comer ou
engordou pelo inchaço dos remédios e vitaminas. E também porque rico é inimigo
ferrenho de roupa desajustada ou com pequeno furo. Mas de vez em quanto surge
um relógio velho, um par de sapatos ainda com sola, um tênis apenas descolado
ou mesmo um maço de dinheiros. Sim, um pacote de dinheiro velho e sem valia
alguma, pois encontrado depois de muito tempo nos escondidos das paredes.
A verdade é que essa coisa de lixo de rico ou
de pobre faz parte da sociologia doméstica ou mesmo da retórica inventiva do
povo. Nem mesmo o coletor dos resíduos ou sobras domésticas conhece a essência
do lixo de rico. Quando muito, na correria para acompanhar o caminhão, deixa
uma sacola escorregar e pelo asfalto fica espalhado o outro lado da burguesia,
do poder, da riqueza. Apenas imundícies.
Somente duas espécies de pessoas conhecem em
profundidade o que seja lixo de rico: a doméstica ou serviçal e aquele que,
noite após noite, sai pelas calçadas catando em tonéis ou escarafunchando sacolas
em busca das sobras capitalistas. A doméstica, que nem sempre joga no lixo tudo
que mereça ser reciclado ou recolhido por outras pessoas, de vez em quando
guarda para si o que ainda pode ser reutilizado ou consumido. Então, o que
sobrará ao catador de lixo?
A ilusão, apenas a ilusão de que lixo de que
rico sempre pode revelar restos que são verdadeiros achados para quem sobrevive
com o nada. Ao menos assim revelou o porteiro com porrete à mão e com ordens
para não deixar animais estranhos rodando os prédios, as mansões, as luxuosas
residências. Os animais estranhos, ou bichos errantes nos lugares indevidos,
são pessoas, são humanos, são os catadores de lixo.
Recordei-me dum poema de Manuel Bandeira,
coerentemente intitulado “O Bicho”, e eis sua transcrição: Vi ontem um bicho/
Na imundície do pátio/ Catando comida entre os detritos/ Quando achava alguma
coisa/ Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade/ O bicho não era um
cão/ Não era um gato/ Não era um rato/ O bicho, meu Deus, era um homem.
Bandeira sintetiza com maestria essa desumana
dependência humana, a vil condição do ser que cata nos monturos, lixões e
calçadas, o seu grão de sobrevivência. E diante de qualquer lixo, seja de rico
ou de pobre, a feição animalesca é sempre a mesma, pois ali a racionalidade não
vai além da cegueira sempre presente na absoluta necessidade. E numa situação
tal, onde a fome faz a boca encontrar sabor em tudo e o nariz deixar de sentir
qualquer cheiro, nada será podre, malcheiroso, imprestável ao homem. Ali apenas
o bicho.
Passando pela alameda em carro de passeio,
alguém teve o cuidado de reduzir a velocidade e fixar o olhar em dois meninotes
que se lançavam com voracidade às bocas abertas de sacolas, e refletiu: Eis uma
Serra Pelada. Ali a voracidade imaginando encontrar a salvação. E aqui, no
lixo, o veio dourado, o amarelado de comida podre lhes parecendo pepita. E a
recolhe com tamanho ímpeto que mais parece a riqueza maior. E é. Ao menos para
o instante faminto, não há nada que possua mais brilho diante do olhar.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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