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quinta-feira, 9 de abril de 2015

LIXO DE RICO


Rangel Alves da Costa*


Não sei se como justa comparação, mas alguém já asseverou: lixo de rico é igual a muita gente que só tem a aparência, pois por dentro é imundície comum. Já outro, dando maior ênfase à sua afirmação, disse: lixo e morte possuem o mesmo sentido na embalagem, eis que depois de algum tempo, e seja rico ou pobre, será sempre melhor não abrir a sacola para ver o que tem dentro.
E um ex-catador de lixo, depois transformado em catador de siri no quintal de casa, ensinava que o pobre, por mais necessitado que seja, deve evitar fazer três coisas na sua catação de sobrevivência. A primeira é jamais pensar que vai encontrar resto de comida boa em lixo de rico, pois é o saco mais pobre que possa existir. A segunda é jamais pedir esmola a gente rica, porque é quem mais tem, porém nunca leva dinheiro no bolso. E a terceira é jamais ficar zanzando por muito tempo perto da calçada, pois além de pobre e descabido no lugar, logo será tido como perigoso marginal que está planejando sequestrar o cachorro da madame.
Dizia ainda que muito catador se engana em pensar que fuçar lixo de rico é garantia de sorte grande. Em primeiro lugar porque parece que rico não come e só toma remédio. Na sua sacola nunca vem um resto de quentinha ou mesmo um resto de macarronada. Só vem embalagem vazia de remédio, de comprimido, seringa, garrafa e lata. Morre de fome quem esperar achar ali um resto de pernil, um naco de carne boa, uma comida de forno. Asa ou coxa de frango nem pensar. Rico parece que é sempre vegetariano, só bebe ou mastiga folha em comprimido. Por isso mesmo é que vive sem cor, sem vigor, sem feição com sustança. É um povo adoentado e deprimido, principalmente porque não tem coragem de se lambuzar diante de um prato suculento. Por consequência, o seu lixo é verdadeiro lixo.
Apenas raramente é que seu lixo traz alguma surpresa, algo que faça merecer a sina de fuçar porcarias sob ameaça de brutamontes que vigiam os altos muros. Acaso a sacola contenha roupa, certamente que será quase nova. É que o dono emagreceu demais por não comer ou engordou pelo inchaço dos remédios e vitaminas. E também porque rico é inimigo ferrenho de roupa desajustada ou com pequeno furo. Mas de vez em quanto surge um relógio velho, um par de sapatos ainda com sola, um tênis apenas descolado ou mesmo um maço de dinheiros. Sim, um pacote de dinheiro velho e sem valia alguma, pois encontrado depois de muito tempo nos escondidos das paredes.
A verdade é que essa coisa de lixo de rico ou de pobre faz parte da sociologia doméstica ou mesmo da retórica inventiva do povo. Nem mesmo o coletor dos resíduos ou sobras domésticas conhece a essência do lixo de rico. Quando muito, na correria para acompanhar o caminhão, deixa uma sacola escorregar e pelo asfalto fica espalhado o outro lado da burguesia, do poder, da riqueza. Apenas imundícies.
Somente duas espécies de pessoas conhecem em profundidade o que seja lixo de rico: a doméstica ou serviçal e aquele que, noite após noite, sai pelas calçadas catando em tonéis ou escarafunchando sacolas em busca das sobras capitalistas. A doméstica, que nem sempre joga no lixo tudo que mereça ser reciclado ou recolhido por outras pessoas, de vez em quando guarda para si o que ainda pode ser reutilizado ou consumido. Então, o que sobrará ao catador de lixo?
A ilusão, apenas a ilusão de que lixo de que rico sempre pode revelar restos que são verdadeiros achados para quem sobrevive com o nada. Ao menos assim revelou o porteiro com porrete à mão e com ordens para não deixar animais estranhos rodando os prédios, as mansões, as luxuosas residências. Os animais estranhos, ou bichos errantes nos lugares indevidos, são pessoas, são humanos, são os catadores de lixo.
Recordei-me dum poema de Manuel Bandeira, coerentemente intitulado “O Bicho”, e eis sua transcrição: Vi ontem um bicho/ Na imundície do pátio/ Catando comida entre os detritos/ Quando achava alguma coisa/ Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade/ O bicho não era um cão/ Não era um gato/ Não era um rato/ O bicho, meu Deus, era um homem.
Bandeira sintetiza com maestria essa desumana dependência humana, a vil condição do ser que cata nos monturos, lixões e calçadas, o seu grão de sobrevivência. E diante de qualquer lixo, seja de rico ou de pobre, a feição animalesca é sempre a mesma, pois ali a racionalidade não vai além da cegueira sempre presente na absoluta necessidade. E numa situação tal, onde a fome faz a boca encontrar sabor em tudo e o nariz deixar de sentir qualquer cheiro, nada será podre, malcheiroso, imprestável ao homem. Ali apenas o bicho.
Passando pela alameda em carro de passeio, alguém teve o cuidado de reduzir a velocidade e fixar o olhar em dois meninotes que se lançavam com voracidade às bocas abertas de sacolas, e refletiu: Eis uma Serra Pelada. Ali a voracidade imaginando encontrar a salvação. E aqui, no lixo, o veio dourado, o amarelado de comida podre lhes parecendo pepita. E a recolhe com tamanho ímpeto que mais parece a riqueza maior. E é. Ao menos para o instante faminto, não há nada que possua mais brilho diante do olhar.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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