SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 17 de junho de 2018

DIZ A LENDA...



*Rangel Aves da Costa


Nos tempos idos sertanejos, de feições arrogantes e bestiais que ainda hoje espelham nas relações sociais, da política e do poder, diz a lenda que muito chão foi encharcado de sangue, muito arame foi cortado no dente, muita família enxotada no cano do mosquetão, muita gente tombou em tocaia e emboscada, muito grito silenciou pelo medo e muito espanto arregalou os olhos sem acreditar.
Cangaceiro era cabra valente e também duma brutalidade e malvadeza sem tamanho. Diz a lenda, e esta escondida por trás de verdades agora testemunhadas em escritos, que a violência chegava a tal ponto de sangrar até mesmo inocente. Ainda hoje é difícil acreditar no que o cangaceiro Zé Baiano fez marcando com ferro de gado em brasa aquelas mocinhas nos sertões sergipanos do Canindé. Violência, contudo, ainda menor que a perpetrada pelo cangaceiro Gato, ao sair matando e cortando cabeças de sertanejos inocentes desde a Fazenda Couro, na Bahia, às bandas da Fazenda São Clemente, já em Sergipe. Nada menos que oito inocentes perderam a vida na caçada infernal comandada pelo carrasco bandoleiro. Por último, já no São Clemente, mandou que um maluquinho deitasse a cabeça num batente e depois baixou o punhal. A cabeça rolou num rastro de sangue.
Soldado da volante também era bicho de arrogância e violência desmedidas. Muitos afirmam que ainda mais aterrorizantes que os bandoleiros de Lampião e outros líderes cangaceiros. Pois bem, diz a lenda, igualmente nascida da verdade, que os caçadores de cangaceiros, sempre raivosos por não poderem capturar ou matar o líder maior do cangaço, passavam a descontar suas raivas, repressões e ódios, no humilde sertanejo, no pobre homem da terra. Aonde a volante chegava o medo logo se espalhava. Todos sabiam de suas extorsões, de suas brutalidades, de suas sedes de tortura e de sangria. Reviravam casebres, desonravam famílias, tornavam prisioneiros desde velhos a meninos. Queriam porque queria saber onde o bando cangaceiro estava acoitado. Arrastavam os sertanejos de suas casas, amarravam junto a cansanções e urtigas, deitavam de cabeça pra baixo nos arvoredos, açoitavam com vara fina, pinicavam no punhal. Muita gente morreu assim, tendo que saber o que não sabia, silenciando o grito por saber do fim que se aproximava.
Diz a lenda que havia um mundo assim e que ainda há. O imaginário moderno sobre o mundo dos cangaceiros e das volantes apenas reflete o que for mais instigante e até apaixonante neste enredo de luta sem fim. Mesmo na violência, a concepção atual é de que a crueldade daqueles idos possuía uma feição muito diferente da bestialidade presente. Asseveram ser – naqueles tempos – uma valentia de homens valentes, de homens que, mesmo espargindo sangria e maldade por onde passassem, levavam consigo objetivos claros nas suas guerras, e neste aspecto muito diferente da violência covarde de hoje. Atualmente, como se afirma, a violência é apenas da covardia, da brutalidade sem qualquer motivo e da atrocidade como rotina na prática da banalidade criminosa. Por isso que muitos pregam o retorno de Lampião, numa alusão ao regresso da valentia como forma única de enfrentar a covardia dilacerante.
Diz a lenda de um mundo de coronéis, de um coronelato forjado no mando e no poder, e cujo curral era o mundo inteiro ao seu redor. Na mesma feição dos arrogantes e impetuosos senhores de engenho, que na chibata e na ponta do ferro de seus capatazes brincavam de lanhar e sangrar o lombo de inocentes, eis que está refletida a ação do coronelismo e sua sanha de ordem, poder, mando e dominação. E também o escravismo da chibata, do grilhão da subserviência do pobre trabalhador, do medo como forma da manutenção da ordem. E também a covardia no trato com o homem da terra, vez que, sendo tido como seu escravo, teria que ser submetido às consequências de seus rancores e ódios. E também um mundo jorrado de sangue nas tocaias e emboscadas, nas mortes ordenadas antes de o cuspe secar, no bestial prazer de receber uma orelha cortada como prova da maldade feita. Ai daquele pequeno lavrador que não quisesse sair de seu pedacinho de chão para que o arrogante senhor aumentasse o seu já desmedido latifúndio.
Diz a lenda que havia um mundo de jagunços que era o desmundo mundo. Algo tão aterrorizante e cruel que mais parecia a morte certeira rondando a todos, com olhos sedentos escondidos nos tufos de matos e mãos defuntescas e gélidas mirando a vítima mais adiante. Assassinos frios, matadores de qualquer um, ceifadores de vidas que tinham no ato de emboscar ou tocaiar, ou na simples espreita da passagem do outro, o seu ofício maior de bestialidade. Podia ser um dia esperando em silêncio, quieto em meio às folhagens, aos tufos, por trás dos pés de paus. Podia ser um instante apenas ou até semana, importando apenas que a vítima aparecesse a qualquer instante para que o gatilho fosse apertado e o tiro certeiro acertasse seu alvo. Depois, apenas os urubus rondando as estradas, as curvas dos caminhos, as veredas ensanguentadas dos sertões adentro.
Diz a lenda que foi assim. Contudo, na lenda apenas a leitura de verdades que se confirmam hoje com outros requintes. O banditismo chamou para si a covardia, o coronelismo chamou para si o poder político e a corrupção, o jaguncismo chamou para si o tocaiamento pelas ruas da cidade. A mesma história, mas de leitura até mais perversa e mais cruel.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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