SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 6 de junho de 2018

SOMOS APENAS...



*Rangel Alves da Costa


Somos apenas o vento que sopra até sumir nas distâncias. Somos apenas a velha canção que depois de cantada vai sendo esquecida. Somos apenas o rio que segue, o leito que espelha, o percurso que vai, até simplesmente passar. Somos apenas a semente lançada, o grão brotado, a colheita gestada, para depois fenecer no tempo. Somos apenas as estações que seguem e se sucedem, até que um dia apenas o outono triste e de folhas mortas. Somos apenas a aurora do dia, o clarão do dia, o entardecer do dia, a noite do dia, até que o calendário apague a passagem. Somos apenas o sorriso da infância, a sisudez do adulto e a melancolia da velhice, até nada mais nos restar para ser. Somos apenas o Eclesiastes, onde tudo passa e tudo se mostra na face, na alegria e na tristeza, no nascer e no morrer. Somos apenas os pés da bailarina em seu voo e em seu repouso no palco sem asas. Somos apenas o palhaço na sua alegria e o palhaço na sua realidade, sem disfarces e sem fazer sorrir. Somos apenas a janela aberta, ensolarada, no vai e vem da ventania, e na solidão interior de tantos segredos e mistérios. Somos apenas o canto do passarinho e seu ninho sozinho, de gravetos e silêncios e de tristezas sem fim. Pois disse o poeta:

Tão belo o horizonte
tão bela a paisagem
ante o olhar do pintor
e sua pátula colorida
para criar o belo mundo
e depois apenas chorar
por não poder ter asas
por não poder voar
e ser veloz passarinho
entre as montanhas azuis
de sua própria criação.


Por que somos apenas o orvalho matinal e a secura da folha no instante seguinte. Somos apenas a miragem no deserto e a boca sedenta de grão de esperança. Somos apenas a folha em branco nas mãos sonhadoras, mas quando desenhada já tarde demais para a nuvem bela e o pássaro em voo. Somos apenas uma casa triste de beiral de estrada e suas vidas escondidas para o mundo e para o viver. Somos apenas o ferro que enferruja e o mar que mareja, somos apenas a pedra que se torna em pó e a tempestade que cessa e seca toda a correnteza. Somos apenas a festa e a bebida, a canção e a valsa, as luzes e as ribaltas, e o silencioso amanhecer sem estrelas. Somos apenas a boca faminta e o lábio voraz perante outra boca faminta e outro lábio voraz, que se aproximam e se beijam e se mordem, e não existem mais. Somos apenas a poesia que cansou de enternecer e o verso sem rima e entristecido. Somos apenas um calendário, no dia a pós dia, e um relógio que apenas chama ao desconhecido. Somos apenas a noite escura em rua triste, a chuva caindo, molhando os olhos e derramando saudades. Somos apenas o céu estrelado em noturno nublado. Pois disse o poeta:

Os guerreiros e os heróis
celebraram em vinho as vitórias
os heróis e os guerreiros
ergueram em festa o mastro da luta
mas os guerreiros e os heróis
preocupados apenas em comemorar
esqueceram-se de curar suas feridas
as chagas abertas em nome da morte
e depois perderam suas próprias lutas
e depois morreram sem qualquer vitória.

Por que somos apenas a quimera e a ilusão. Somos apenas o instante sem o amanhã. Somos apenas o contentamento e fingir viver para não viver. Por que somos apenas frágeis humanos. Por que somos os humanos que nos dizimamos.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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