Rangel Alves da Costa*
Alguém confessou ao espelho que não se
surpreendesse se no dia seguinte ou a qualquer momento não ser mais ele que
estaria ali para ser espelhado, ainda que com a mesma feição. E assim porque
sentia por dentro, tomando a mente e todo o seu corpo, algo que estranhamente
avançava para minar suas forças, para reduzi-lo a nada. Sempre se imaginara com
força insuperável, indestrutível, mas que agora sendo colocado à prova por uma
força silenciosa e destruidora. Verdadeiramente sentia-se como um ferro sendo
tomado pela ferrugem.
E a ferrugem enfraquece o ferro, eis uma
absoluta verdade. E muito o espelho ouviria se perguntasse por que assim
acontece. Igualmente ao ferro, o homem também vem da natureza, pois do barro da
terra, segundo preceitua o criacionismo. Tal qual o minério de ferro, é
purificado para ganhar consistência. E também como a matéria bruta que se
transforma em aço, o ser humano também acaba se tornando em estado de
durabilidade. Então surge, no homem, um problema crucial a ser resolvido: como
não deixar que a ferrugem vá, imperceptivelmente, domando a sua estrutura?
Mas de qual ferro e ferrugem se está falando?
Do metal extraído do minério e transformado em aço e a deterioração advinda da
oxidação pelo contato com o ar e a umidade? Ou de quaisquer outras forças que
não resistem às ações inevitáveis do tempo? Talvez sobre tudo. Sobre o ferro da
vida, da idade, dos seres. Sobre a oxidação que a tudo vai silenciosamente
tomando até adentrar no seu cerne, nas suas entranhas e enferrujar até destruir
o impensável de ser afetado. E a completa destruição é o último estágio dessa
ferrugem.
Acontece no metal e no homem. Gota a gota,
pingo a pingo, a umidade vai se formando sobre a férrea e indestrutível solidez.
Mas a cada instante, lenta e imperceptivelmente, vai oxidando e fragilizando a
força. E de repente outra feição vai se espalhando, dando outra cor e outra
forma, que nada mais é que o enfraquecimento, a perda da absoluta resistência.
O indestrutível então vai se dobrando ao acaso, a força padece ao querer do
nada. E é assim que a ferrugem enfraquece o ferro.
É assim que o metal se dobra à voracidade da
maresia; é assim que a pedra vai sendo carcomida, diluída, para se tornar em
grão, em pó; é assim que a madeira é devorada pelo frágil cupim; é assim que a
aragem vai tornando em cinzas a brasa vivaz; e é assim em tudo. Por mais que a
feição externa permaneça com aparente resistência e nada aponte que a matéria
já esteja sendo corrompida, é no percurso dos dias que tudo vai sendo tomado
pelas situações inesperadas.
No ferro, o surgimento de uma pequena crosta já
indica sua afetação. Mas tudo tão lentamente que se imagina poder resolver o
problema com uma simples limpeza externa. Porém, quanto mais se remove mais vai
haverá destruição. Quer dizer, não adianta dar apenas uma aparência de
descontaminação quando o ambiente é propício para a continuidade. Eis uma metáfora da vida: Há um muro pintado
de novo e repintado, mas aquela aparência será de pouca valia se a estrutura já
estiver corrompida, prestes a desabar a qualquer momento.
O ferro da vida, pois, se põe na constante
ameaça da maresia do tempo, da existência. Como num espelho que vai embaçando
pela idade e numa fonte parada que vai secando pela exposição ao sol e ao
vento, assim também com a estrutura do aço humano. E o ser de repente se vê
atormentado pelas enfermidades ou por aquilo que já lhe domou internamente. Mas
também nas fraquezas da mente, como para demonstrar que o ser humano pode ser um
castelo de areia prestes a ruir pela simples umidade da areia.
Assim na fortaleza que se torna ruína, no
poder que enfraquece ajoelhado, no reinado absoluto que é invadido por um
bárbaro qualquer. E na vida, no ser humano. Tanta pedra, tanto ferro, tanto
fogo, para, de repente, apenas sentir que desde muito já vem sendo devorado
pela idade, pela doença, pelas circunstâncias cruéis da existência.
Por isso mesmo, engana-se aquele que imagina
ser suficientemente poderoso para superar qualquer ameaça que possa surgir.
Ora, nada mais enxerga que o visível, que a aparência, que o perceptivelmente
sólido e forte. Mas não se volta para a visão do íntimo, das entranhas, para as
raízes. E, como uma fruta de pele sedosa, o seu interior já poderá estar sendo
tomado por minúsculos seres que a tornam imprestável.
Em tudo na vida há uma ferrugem que ainda não
despertou. Imperceptível, porém já com presença ameaçadora. Impossível
percebê-la diante da aparente solidez e resistência. Mas ela já está ali,
silenciosamente presente, impossível de ser evitada. Acaso o ser humano fosse
mais atento, mais realista e procurasse avistar as coisas sem recortes, logo
perceberia que o ferro que será tomado pela ferrugem vive rodeado por fatores
para que o inevitável aconteça. Quer dizer, o próprio homem provoca a maresia
diante de si.
E o que fazer, então? No metal, a química
apenas retarda a ação; no ferro humano, somente o homem para se preservar e ser
menos afetado pelo inevitável. Mas não há como fugir da ferrugem.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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