Rangel Alves da Costa*
A chama da vela ia diminuindo lentamente e
ele parecia nem perceber. Quando a resina consumia todo o pavio e a última
chama se esvaía, então o breu o fazia voltar à realidade. Antes disso se
entregava de corpo e alma, quase que passionalmente, a descrever como as
borboletas repentinamente surgiam no quarto e voavam ao redor da mocinha
adormecida com feição chorosa.
Ou saía tateando para encontrar outra vela ou
tinha de permanecer na escuridão. Não havia outro jeito. A luz elétrica havia
sido cortada por falta de pagamento, e assim já havia se passado quase um mês.
Então levantou e foi se batendo sobre os móveis antigos, chutando garrafas
vazias espalhadas pelo chão, até lembrar que tinha uma caixa de fósforos no
bolso. Acendeu o palito e se pôs em busca de mais uma vela. Com a volta da luz
tomou mais uma dose de aguardente e sentou diante da velha máquina de escrever.
“Assim como chegavam as borboletas sumiam,
repentinamente. Bastava que a mocinha começasse a despertar e todas seguiam em
direção à janela, por onde passavam mesmo que estivesse fechada. Mesmo sem
jamais ter visto aquelas visitantes, um fato causava muita estranheza à bela
jovem, eis que encontrava asas de borboletas, pétalas de rosas e até favos de
mel ali espalhados...”.
Foi esta a escrita seguinte ao retorno da
chama. Certamente que escreveria muito mais naquela noite, talvez adentrasse na
madrugada naquele seu doce ofício. Gostava de escrever, de criar situações,
tramas, enredos, dar vida a personagens, comandar seus destinos, ser um deus daquele
universo de papel, daquela história. Assim o velho escritor, assim a solidão de
um homem que outra coisa não fazia a não ser escrever, escrever e escrever.
Mas já estava cansado. Já nem sabia quantos
romances mantinha guardados nas suas gavetas empoeiradas, em meio às traças e à
voracidade do tempo. Também já estava cansado de colocar manuscritos debaixo do
braço, pagar caro para copiar e pagar mais caro ainda para registrar em
cartório, e depois entregar a editores que sequer davam uma futura satisfação.
Sabia muito bem que o destino de suas histórias não era muito diferente daquele
encontrado nas velhas gavetas de sua casa.
Tinha vontade de pedir licença a cada um
daqueles editores para ler alguns trechos de seus romances, contar detalhes
sobre a trama, falar dos personagens, porém sabia que nenhum daria
oportunidade. E tinha mais vontade ainda de dizer que precisavam reconhecer o
que é uma boa escrita e o que é apenas um monte de palavras sem qualquer
qualidade literária. E acrescentar ainda que uma boa história está no contexto
e no acuido da trama, e não na fama do nome do autor.
Mas apenas solicitava que olhassem aquela
obra com atenção. Assim mesmo já fizera com tantas outras, sem os resultados
esperados. Porém nada disso o desestimulava. Pelo contrário, escrevia cada vez
mais, produzia cada vez mais, pois se sentia feliz em criar e plenamente
realizado ao escrever a frase final de mais um romance. E depois lia inteirinho
como se fosse um leitor se encantando com a leitura. Tal prazer ninguém lhe tirava.
Mas a sua obra não era de toda esquecida. Uns
quatro ou cinco romances já havia, há muito tempo atrás, obtido até linhas
favoráveis da crítica. O problema maior era que não aceitava mais entregar
oitenta por cento da vendagem de cada livro à editora e lhe restar somente uma
ninharia. E sua esperança era juntar dinheiro suficiente para ir lançando seus
livros, um a um, por conta própria. Mas o que recebia como aposentado não
chegava nem à metade do mês. Por isso mesmo que até a energia elétrica havia
sido cortada.
Tinha esperança de fazer assim, mas também
sabia que seria quase impossível. Estava velho demais, cansado demais, sem
muitos anos pela frente. Vivendo sozinho, entre livros, traças e sonhos, não
lhe restava senão conversar com suas próprias criaturas. E oferecia aguardente
a um, cigarro a outro, de vez em quando perguntando se já não estava bêbado
demais para conversar com pessoa tão importante. Sofria e até chorava toda vez
que abria a gaveta para se despedir de quem lhe era tão importante.
A madrugada quase chegando e o velho escritor
ainda teclando suas vidas. Mas a vela novamente acabou e não havia mais outra.
Então ele acendeu um fósforo, virou o que restava da garrafa num copo, bebeu e se
dirigiu até um espelho. Com a chama apagada, apenas disse: Como estou noite!
E adormeceu chorando, avistando uma
inexistente lua.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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