Rangel Alves da Costa*
Coronel nordestino de verdade não precisava
de patente outorgada pela Guarda Nacional para expressar seu poder e mando. Mesmo
que muitos poderosos tenham feito do título uma forma de aumentar seus prestígios
e alargar suas influências perante as forças políticas, a verdade é que a expressão
máxima de sua autoridade tinha de estar enraizada nos limites de mando e
perante aqueles que se submetiam e sustentavam o seu poder.
A força coronelista, o seu respeito e
influência, bem como o reconhecimento de sua patente, surgiam do exercício de
seu poder não só nos seus limites quase que feudais como nas áreas comandadas
por outros coronéis. Assim porque a construção e fortalecimento de sua
liderança exigia uma medição de forças com outros poderosos, com cada um querendo
tirar proveito na esfera alheia. Daí as tantas inimizades, desavenças e
combates sangrentos. Os capangas e jagunços eram colocados em ação para
resolver na bala as muitas discórdias.
De qualquer modo, sempre baseada em
resquícios do feudalismo, a autoridade do coronel era fruto de um exercício de
poder por ele próprio implantado e não de um título que lhe era politicamente
oferecido. Sua força era forjada no poder sobre a terra, o homem e o bicho, e
não de formalidades políticas. O reconhecimento de sua patente se dava, pois,
pela imposição de uma situação de poder e aceitação por aqueles que se tornavam
dependentes desse poder, ainda que exercido de forma demasiadamente
autoritária, cruel e desumana.
Logicamente que a caracterização do coronel
nordestino exigia muito mais que apenas o exercício de poder e autoridade numa
determinada região. E também não podia ter sua força reconhecida somente pelas
forças externas. Tinha que fazer de sua ação a síntese maior de seu mando. E
assim fazia, por exemplo, mantendo trabalhadores no subjugo, fazendo do voto de
cabresto uma expressão de poder eleitoral, tendo o clientelismo e o
apadrinhamento como formas usuais de manipulação, alongando sua mão férrea em todas
as direções. E, por consequência, mantendo a vida e a morte de todos sob seu
controle.
Tudo gestado a partir da riqueza, do
latifúndio, da exploração, da submissão até escravocrata de uma classe
desvalida de quase todos os meios de sobrevivência. E também o mandante de
tocaias e emboscadas não só contra poderosos inimigos como de qualquer um
empobrecido que ousasse transgredir seu desejo e sua lei. Teria morte certa
aquele que se negasse a sair de seu pedaço de terra ou entregá-la por dois
vinténs. Para aumentar os latifúndios fazia do sangue escorrendo uma prática
costumeira.
Não havia limite ou medida no mando do
poderoso nos rincões nordestinos. Seu respeito e poder eram construídos por
cima de tudo e todos. Certamente que em alguns casos a honraria alcançada
surgiu de muito suor e luta, enfrentando o desbravamento sangrento do sertão
para fincar seus limites. Mas depois do poder alcançado tudo desandava numa
coisa só: o trato do homem da terra, do seu inferior, como se fosse bicho. Um
bicho humano devendo obediência, vivendo nas suas rédeas, servindo
exclusivamente aos seus doentios desejos.
Bicho humano que tinha de lhe servir sem
tempo para pensar nem reclamar, sem poder dizer não ou se demorar. O bicho
humano conhecia bem quais as armas do poderoso e do que ele era capaz para
conseguir tudo o que desejasse. O bicho humano que não tinha razão, não tinha
esperança, não tinha como reconhecer-se como humano, senão como burro de carga,
como mão da lavoura e da colheita, como pé no espinho da lide debaixo do sol,
como aquele retornado à escravidão por força da necessidade de sobrevivência.
E bicho humano não somente aquele que vivia
sob as ordens diretas do coronel, cuidando de seu latifúndio, mas também todo
aquele que vivesse na circunscrição sob sua autoridade. Igualmente tratando
como bicho todo aquele precisasse de seus favores. E todos acabam precisando,
pois dono da vida e da morte, da honra e da negação. No coronel a esmola, o
remédio, o pão para não morrer de fome, tudo na medida da mera sobrevivência.
Mas nada de mão beijada. Tudo com o preço alto da subserviência, da submissão,
de tornar-se bicho no seu curral.
O homem considerado como bicho de curral, com
seu voto negociado pela liderança, servindo à manutenção do poder que o oprime
e subjuga. Ora, toda a região de mando era tida como um grande latifúndio e
cada ser vivente como um bicho de sua propriedade. E na época de eleição,
perante os acertos e conchavos, toda aquela gente tinha seu voto negociado a
preço alto. E a venda de dois mil votos, por exemplo, era feita com a porteira
do curral fechada, eis que tanto o político como o coronel sabia que o cabresto
conduziria cada um daqueles votantes às urnas.
Ser tido e tratado como bicho confronta todos
os preceitos humanos. Mas não havia educação que permitisse uma consciência
crítica sobre a educação. Também não havia esperança de vida fazendo oposição
ou negando a ação do coronel. Ou aceitava ou calava. E calado aceitava sua
condição de eterno dependente de um quilo de fubá, um pedaço de carne seca, uma
garrafa de cachaça. Tudo capim de bicho. E sem sequer poder mugir a sua dor, o
seu sofrimento.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
2 comentários:
texto ótimo, leve e bem escrito.
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