SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 15 de novembro de 2014

FARINHA SECA E RAPADURA


Rangel Alves da Costa*


Farinha seca e rapadura, eis os mantimentos indispensáveis ao aió, alforje ou embornal do autêntico caçador sertanejo. Ao menos de antigamente, pois hoje praticamente não há mais caça nem caçador. As queimadas, devastações e destruição da natureza acabaram também com os bichos. O preá, por exemplo, que chegava a infestar em determinadas ocasiões, agora sumiu de vez.
Mas ainda há quem se arrisque a adentrar no que resta de mataria, principalmente em torno dos tufos, macambiras e locas das pedras grandes, pronto para disparar a espingarda de chumbo socado em qualquer rastejante que encontrar. Faz isso por necessidade, ainda sai em caçada na esperança de levar pra casa qualquer coisa que ao menos engane a fome da filharada.
Noutros tempos era muito diferente. A caça fazia parte da sobrevivência do sertanejo e na catinga sempre encontrava o alimento tão importante. Não fazia por esporte, por brincadeira ou no intuito de dizimar qualquer espécie, mas por pura necessidade. Em época de estiagem grande, com a voracidade do sol devorando tudo, não havia outra saída senão buscar no mato a mistura da farinha seca.
Por isso mesmo que a caçada era uma prática tão constante, vez que também tão frequente a falta comida de feira no fogão de lenha. E caçadas que duravam dias, até uma semana inteira com o velho rastejador no encalço da carne gorda, do bicho farto. Voltava trazendo veados, caititus, codornas, nambus, preás, cágados, teiús e muitos outros bichos ainda abundantes nas caatingas sertanejas. Mas hoje tudo diferente.
Nos descampados sertanejos de agora não há mais mato nem bicho. O calango corre de canto a outro, descendo e subindo pedra, porque não encontra mais uma boa sombra de mato. Passarinho não encontra galhagem nem para o voo nem para o ninho. Cágado se entoca de ninguém mais encontrar. Até mesmo cobra desapareceu debaixo das pedras e das beiras de estradas.
Por consequência, quando a seca vem esturricando tudo e na dispensa do pobre não resta mais nada para iludir barriga, só mesmo o desespero para fazer com que o sertanejo decida arriscar uma caçada. Quando resolve partir, então se prepara como faziam os velhos caçadores de outrora, do mesmo jeitinho. Lançam mão da espingarda, da indumentária própria para enfrentar tocos de paus e espinhos, guarnecem o velho cantil e jogam nas costas o saco para colocar a caça e cruzando o peito o aió, o alforje ou o embornal. E chama o velho e magro cachorro perdigueiro, farejador, caçador nato.
Também o alimento que leva é o mesmo de outros tempos, pois sempre a farinha seca e a rapadura, e esta bem embrulhada em sacola plástica pra não se derreter inteira no calorão da caatinga. Um ou outro ainda consegue levar um pedaço de carne seca ou pedaço de queijo, mas já é luxo demais pra quem vai caçar porque a comida escasseou de vez no fundo da panela. Assim, a farinha seca com rapadura sempre consistindo na amizade inseparável do homem da terra.
Mas também do lavrador na sua lide debaixo do sol, do vaqueiro nas distâncias da mataria e de todo aquele que pegava estrada para procurando assegurar o pão da família. Coisa pouca, contudo, pois duas ou duas ou três mãos de farinha e bastava, ainda que não soubesse bem o momento de retornar. Acaso tudo acabasse, então tinha de se virar como podia. E tantos e tantos faziam fogueiras no meio do tempo para jogar nas brasas a carne esbranquiçada de um teiú.
A farinha seca com rapadura continua sendo o sustento de muito sertanejo na sua lide no mundo. Contudo, se for caçador, só sendo doido para entrar na vereda sem levar um pedaço de fumo e meia garrafa de cachaça. Sua parte também levava, mas não podia esquecer de jeito nenhum a oferenda para os seres encantados da natureza. Assim, ao colocar o pé por cima do espinho, na primeira pedra grande que encontrasse tinha que deixar o presente para a caipora. Para esta o fumo e para outros a cachaça.
E ai de esquecer. Mais adiante vai levar uma surra tão grande que após desacordar e levantar moído, ainda vai ficar amalucado e sem saber o caminho de volta. Coisas do sertão, coisas do meu sertão!


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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