Rangel Alves da Costa*
Sou da terra, sou filho do cacto e do sol maior, nasci na lua imensa e
tenho nas veias rosários de esperanças e terços de fiel religiosidade, mas de
vez em quando me ponho a rever alguns conceitos acerca do sertanejo. E de
antemão passo a ter a famosa frase de Euclides da Cunha como um erro dos tempos
ou talvez de lugar ou de homem, de outro sertanejo.
“O sertanejo é, antes de tudo, um forte”, eis a assertiva euclidiana. E
tal força foi sendo construída historicamente, e não pelo vigor físico, mas
pelo encorajamento para enfrentar e vencer as maiores dificuldades. Contudo, o
tempo cuidou de fragilizar a força do homem e colocá-lo refém daquilo que nada
tem a ver com sua história e seu destino. Agora apenas mais um num lugar que
pouco lembra o verdadeiro sertão.
Certa feita escrevi um texto que intitulei “Eu, sertanejo, com orgulho
do povo e não da gente”. Seria o mesmo que dizer do orgulho de ser da terra
sertaneja e não da mesma linhagem de parte do povo do sertão. Ou ainda orgulho
de ter nascido nas brenhas matutas, porém envergonhado com o rumo que o
sertanejo vem tomando. Mas nenhum exercício de revolta. Nada disso. Fato é que
o joio vem se arvorando do direito de dizimar a pujança do trigo, das
verdadeiras nascentes interioranas.
Agora confirmo que tinha razão no que escrevi há mais de quatro anos.
Muitos, e certamente a maioria, continuam honrando seu berço de nascimento e
seu destemor pelas ameaças e perigos da estrada, mas outra parte,
principalmente aquela descompromissada consigo mesmo e com seu chão, insiste em
contradizer a assertiva euclidiana. Por consequência, um fraco que, renegando
as lições repassadas, abraça com voracidade um mundo que não é o seu e uma
realidade que não é a sua.
Soa difícil asseverar, mas tornou-se raridade encontrar o verdadeiro
caráter sertanejo naqueles quadrantes. Quando cito o caráter peculiar ao homem
da terra, logicamente que afirmo sobre sua honradez pessoal, seu encorajamento
para vencer as mais difíceis situações, sua postura íntegra diante das
facilidades mundanas, bem como o respeito defendido acima de tudo. E um homem
assim, com tais características, certamente não se deixa conduzir nem ser
transformado como atualmente se percebe.
Antigamente, quando as estiagens devastavam as forças sertanejas e o
homem ficava despojado da terra tanto para plantar como para colher e
trabalhar, ainda assim ninguém se submetia a esmolas nem se rendia a qualquer
vintém político. Sofria, padecia, ficava em tempo de endoidar, mas suportava
tudo no silêncio da fé e da esperança. Muitos viajavam, outros mudavam de
ofício, mas ninguém cruzava os braços esperando apenas que os políticos se
aproveitassem da situação e oferecessem um quilo de fubá ou de arroz quebrado.
Mas hoje, agora tudo é diferente. Mesmo que os campos estejam
verdejantes, não falte o que fazer para garantir o pão e pagar as contas, o que
se vê é uma leva de sadios sem querer bater um prego em nada. Passam o dia
inteiro no ostracismo, alimentando a vergonhosa lassidão, sem poder acrescer
nada mais ao que já não tem, e somente porque sua vida agora se resume a
sobreviver das esmolas governamentais. E assim vão continuando, retribuindo no
voto e na cegueira política o tostão da vergonha.
Com outros contornos, mas com parte da juventude não é diferente. Neste
caso, o problema não é a indolência, mas o afastamento dos estudos e o nada
fazer que acabam levando a perigosos caminhos. Diferentemente de outros tempos,
quando a escola era para poucos, agora não se pode reclamar que a educação está
sendo negada. Mas muitos abandonam os estudos logo cedo e depois, não
encontrando oportunidade no mercado do trabalho, se voltam ao mundo dos vícios,
das drogas, das ilicitudes.
Também os modismos cuidaram de fazer com que o jovem sertanejo se
negasse como tal. Não são poucos aqueles que caminham tentando apagar suas
raízes, suas heranças familiares e de chão. Desconhecem totalmente os costumes
e tradições do seu povo, sequer ouvem um forró ou um violado caipira,
contentando-se somente com as ilusões forjadas pela televisão e pelos brilhos
da cidade grande. Transformaram-se em sertanejos tecnológicos, high-tech, dos
modismos exacerbados e culturalmente devastadores.
Não consigo acreditar que o tempo tenha o poder de modificar tanto o homem,
transformá-lo num ser apenas de aparências, vivendo disfarçado consigo mesmo e
perante aquele que não o conhece, renegando suas raízes e maculando a própria
história do seu berço de nascimento. Não consigo imaginar o chapéu de couro, o
gibão, a indumentária vaqueira, os instrumentos da terra, tudo sendo abandono
pelos cantos porque os mais jovens sequer reconhecem mais.
Então me pergunto: O sertanejo é antes de tudo um quê? O barro que
moldou o homem esfarelou com o tempo. Mas cada um é forte à medida que consegue
juntar e valorizar seus restos. Eis a força que resta ao verdadeiro sertanejo.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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