Rangel Alves da Costa*
Durante mais de cinquenta anos Sebastiana
conviveu com seu esposo numa tapera nos escondidos de beira de estrada de chão,
verdadeira vereda. Leocádio, companheiro da vida inteira e única companhia de todo
dia, havia morrido de teimosia, como repetia a esposa.
Ele, já envelhecido e conhecedor dos perigos
da vida, jamais poderia fazer o que fez. Ora, todo sertanejo sabe muito bem que
após tomar café quente ninguém pode pegar frieza e muito menos sereno ou pingo
de chuva. Mas o velho, encantado com a chuva repentinamente caindo, virou
goela adentro o café ainda quente e correu porta afora, abrindo os braços no
meio do tempo molhado. Estuporou e morreu.
Bastiana, como era mais conhecida, se
despediu do seu velho dizendo apenas que também já estava arrumando a mala para
partir, e que não demoraria muito. Ele podia esperar onde estivesse. Mas os
anos foram passando e ela continuando em pé, cheia de reumatismos e dores nas
cadeiras, mas ainda andando de canto a outro no vai e vem do dia após dia. Já
havia passado dos oitenta e ainda saía para recolher lenha nos arredores da
moradia.
Para qualquer outra pessoa seria
verdadeiramente insuportável aquele jeito de viver, aquela mesmice e aquela solidão
permanente. Mas ela suportava quietinha, no sopro dos anos, apenas levando no
olhar um brilho opaco de nostalgia. Depois da partida do esposo ficou mais de
ano sem abrir a boca, sem dizer uma palavra sequer, mas depois começou a falar
com o cachorro magro, o gato arisco e a rolinha fogo-pagô que não saía de sua
janela. E logo desandou a falar sozinha como se alguém estivesse por ali num
diálogo constante.
Falava sozinha, mas ainda não estava caduca.
Entendia muito bem o seu mundo, sua vida, sua situação na existência. Desde
muito que não ia à cidade nem avistava um só pé de pessoa. De vez em quando
avistava vultos passando na estrada adiante, lavando gado ou só de passagem,
mas ninguém chegava à sua porta para pedir ao menos um copo d’água. Certamente
achavam que naquele desvão de mundo e naquela casinha caindo aos pedaços já não
morava ninguém.
Mas ela, Bastiana, continuava por lá e nos
seus afazeres de cada dia, lutando pela sobrevivência. Alimentava-se da terra,
do mato, do quintal, do que conseguia. Puxava o pescoço de uma galinha e tinha
carne garantida para quase um mês, colhia feijão de corda e garantia a panela
cheia, fazia farinha da terra e assim ia se mantendo sem necessidade de feira
ou qualquer esmola. Voltava do mato trazendo folhagens que acabavam num misto
saboroso e medicinal de chá e café. E não precisava nada mais que isso para
sobreviver.
Mesmo a idade não modificou seus costumes.
Acordava com o cantar do galo, soprava a chama do candeeiro, lançava mão do
rosário e seguia rumo ao oratório. A mesma prece de sempre: Pai Nosso, que
estais no céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino, seja
feita a vossa vontade, assim na terra como no céu. O Pão nosso de cada dia nos
dai hoje, perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem
ofendido e não nos deixeis cair em tentação, as livrai-nos do mal. Amém.
Depois se benzia e rumava ao quintal para
conversar com as galinhas ainda sonolentas, mas já esperando a visita. Mexia
numa planta e noutra, jogava uma cuia d’água, recolhia ovos, juntava lenha
para o fogo da manhã. Noutros tempos ralava cuscuz, cortava toucinho de porco,
fazia mexido com ovos. Mas agora jogava alguns ovos numa panela e deixava
ferver. Era o seu café da manhã de todo dia.
Depois inventava de varrer a casa. E era
quando a poeira subia e o pó tomava os cacarecos envelhecidos. E lá ia Bastiana
sacudindo a poeira. Isso todo dia, até chegar o momento de abrir a janela e a
porta da frente para a luz do dia entrar e a ventania fazer seu passeio. Depois
sentava numa velha e carcomida cadeira de balanço rente a janela e ali
permanecia até a hora de jogar água por cima do corpo. Retornava para conversar
sozinha enquanto lançava o olhar para o mundo tão singelo e bonito que havia à
sua frente.
Apenas um sertão desolado e triste, mas de
uma beleza sem igual para a velha Bastiana.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Feliz quarta-feira!
Seu textoé sensacional.
Abraços
Nicinha
Postar um comentário