*Rangel Alves da Costa
Povos, grupos de pessoas, comunidades, e até
civilizações, existiram sem o menor desejo que fossem conhecidos e aproximados
pelo mundo exterior. Fechavam-se em si mesmas, distanciavam-se como podiam do
contato de desconhecidos. E há notícias que algumas sociedades tribais ainda se
mantêm evitando qualquer aproximação de forasteiros.
De vez em quando, o noticiário dá conta de
tribos indígenas ainda preservadas na sua integralidade, ainda vivendo nos seus
modos mais primitivamente enraizados. Desconhecem outras realidades e evitam ao
máximo ser avistados e importunados por aqueles estranhos e sempre tidos como
ameaças. O mesmo ocorre com outros povos ainda existentes na Índia, na região
caribenha e polinésia, no mundo saariano, nas remotas regiões soviéticas e em
muitos outros lugares onde seus moradores vivem, desde os tempos primeiros, em
total isolamento. E por um querer próprio.
E assim ocorre por diversos fatores,
envolvendo aspectos geográficos, históricos e sociais. Mas é na Antropologia
que reside uma possível explicação: o isolamento como necessidade de
sobrevivência. Ressalta-se sempre a necessidade de manutenção dos costumes,
crenças, tradições e todo um modo de vida caracterizado como único em seu
contexto. Na preservação de mundos tão próprios, tais povos tudo fazem para
serem ignorados pelo restante do mundo, praticando até o canibalismo, como
ocorre com algumas tribos ante a aproximação de forasteiros.
Contudo, outros motivos existem para que
surjam os isolamentos. No Brasil, durante o período da escravidão enquanto
prática social aberta e recorrente, muitos negros trazidos do além-mar africano
e vendidos a senhores de engenhos e latifúndios, não suportando as crueldades e
as sangrias na pele e na alma, simplesmente fugiam de seus cativeiros e
senzalas e iam se esconder em locais de difícil acesso, evitando a fácil
captura. E assim foram surgindo os quilombos, comunidades de escravos libertos
por si mesmos, geralmente em regiões serranas e de mata fechada, com
verdadeiras armadilhas da natureza ao seu redor, a exemplo do Quilombo de
Palmares.
Mesmo com o fim da escravidão oficial, muitas
dessas comunidades permaneceram como verdadeiros refúgios. Os quilombos
continuaram existindo não mais como esconderijos, não mais como meio de
proteção e defesa contra as cruéis e aterrorizantes investidas dos algozes
brancos, mas sim como verdadeiras sociedades organizadas nos seus modos de
viver, de produzir, de vencer os desafios da sobrevivência. Daí terem surgido
inúmeras povoações nascidas escravas, negras, de passados tristes e humanamente
abomináveis.
A Barraca dos Negros nasceu assim, surgiu em
tal molde de memória de açoite e dor, a partir da assentada de negros fugidios,
de escravos que um dia arribaram e ali chegaram para fincar o futuro de um
povo. E um povo negro legítimo, de raiz, flor e fruto africanos, de pele
tingida na cor e de desmedida tenacidade na luta. Primeiro o quilombo, depois a
comunidade organizada em seus costumes e práticas sociais, e ainda hoje, tantos
anos depois, o livro ainda aberto naquela página antiga.
Hoje é uma comunidade aberta, com mistura de
outras raças à raça primeira, com miscigenação nascida dos matrimônios e filhos
que nem sempre trazem no semblante a raiz escrava, mas permanecendo a mesma
matriz local. Nos mais antigos, porém, ainda se avista o passado, ainda o
espelho de um tempo que parece jamais esquecido. Por isso mesmo, olhos que
continuam tristes, palavras que saem lentas, pensativas, como se o silêncio
fosse a melhor expressão.
Um povo pobre, buscando na terra a sua
sobrevivência, vivendo o seu dia a dia e evitando as influências negativas do
mundo exterior. Sente que para muitos a escravidão ainda não acabou, que ainda
é visto com submissão, preconceito e discriminação. Por isso mesmo a vida em
meio a todos, mas um tanto distanciada de todos; o relacionamento amigável com
todos os forasteiros, mas sempre desconfiando de suas reais intenções.
O fogão de chão ainda no quintal. A lenha
mais adiante, no meio do mato. O pedaço de toucinho estendido no varal, a
moringa d’água esfriando no umbral da janela do barraco de barro e cipó. Um
menino corre de canto a outro, uma galinha cisca enquanto a velha negra coloca
seu cachimbo no canto da boca. Em tudo uma sabedoria impregnada de crendice e
misticismo. Não há adoração de deuses outros. De vez em quando um tambor ressoa
em louvor ao passado. Assim uma vida.
Uma vida na Barraca dos Negros. A mesma vida
de tantas e mais tantas barracas negras ainda existentes. Muitas ainda são
encontradas pelos remotos caminhos e distâncias de um Brasil ainda negro. E
negro, retinto e luzente, pelo orgulho arraigado num povo que tem na cor sua
marca indelével de beleza e encorajamento à luta.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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