*Rangel Alves da
Costa
Há um
martírio em Clarice Lispector que não quero ter. É como se eu ainda avistasse
seu olhar tristonho, melancólico, angustiado. Um cigarro à mão, um olhar
perdido na vidraça adiante, e aqueles silenciosos gritos em cada linha, em cada
escrito, em cada livro. Ninguém foi mais introspectiva, intimista e
dolorosamente verdadeira que Clarice, por isso não quero ter o seu martírio a
me acompanhar.
Há um
fanatismo apaixonado em Florbela Espanca que não quero ter. Seu amor tão real
como destrutivo, sua expressividade tão vívida quanto deprimida, sua revelação
tão absolutamente desnuda como dolorosa, faz-me fugir de uma poesia assim, tanto
mais dor que o próprio amor. Também não consigo fugir da imagem nevoenta de um
soturno botequim, de uma dose envenenada de paixão, e de um talvez tão errante
quanto a desilusão. Por isso não quero ter sua paixão funesta a me acompanhar.
Há uma
revelação angustiante em Franz Kafka que não quero ter. É como se eu tivesse
que ser o outro, assim como um desprezível monstro, para fugir daquilo que
realmente sou. Jamais conseguiria me desfazer de corpo e de forma, tornando-me
aos poucos irracional e amedrontador, apenas por que a voracidade do mundo
desqualifica minha existência ou me enxerga como um reles e asqueroso ser. Eu
expressaria a dicotomia do mundo a este esmagando, e não deixando que os pés da
sociedade me esmagassem. Por isso que não quero me revelar na angústia de
Kafka.
Também não
quero o mundo de cabeça pra baixo de Gabriel García Márquez, de Júlio Cortázar,
de Juan Rulfo, de Alejo Carpentier ou de José J. Veiga. Não quero nada de
fantástico nem de absurdo, bicho que fala ou acontecidos sem pé nem cabeça.
Digam que eu estou maluco quando alguém disser que subi ao monte para voar com
asas de gavião. Ou que eu dei de beber para matar a sede do rio, ou ainda que na
madrugada eu estendo cadeira na varanda esperando alma penada para conversar.
Mas não
posso negar que vivo entre silêncios e trovões, ainda que ninguém ouça sequer
um estampido vindo lá de cima. Não por desejo meu, que se adiante. Vivo
semeando silêncios e tudo fazendo para tê-los comigo a todo instante do dia.
Silencio o silêncio, peço para não sussurrar, insisto na mais absoluta calada.
E de repente o trovão. Um trovão sempre acompanhado de trovejares sem fim.
Entrecortando o meu silêncio, cada trovão cai sobre a minha janela como uma
bomba ensurdecedora.
E somente
assim compreendo a inquietude da escrita. O escritor, por mais que deseje ser
dono e preservar o silêncio, não pode fugir às tempestades retumbantes,
verdadeiramente aterradoras. Eis que surgem os trovões para tremular sua
escrita. Os personagens gritam, choram, se atormentam, angustiam, berram e
bradam, enlouquecem, querem morrer de tédio. Mas de onde vêm tantos trovões que
tornaram o silêncio assim tão tempestuoso? De dentro do próprio escritor, de
sua alma, de seu íntimo, de seus mais escondidos.
Ora, o
escritor é um ser atormentado em si mesmo. Por mais que sua escrita seja
absurda ou irreal, ainda assim estará se espelhando em devaneios íntimos,
desvelando fantasias que imagina possíveis ou mesmo utilizando de metáforas
para revelar seus fantasmas. Nada é completamente fictício nada escrito. A cada
linha se avista uma reminiscência, uma situação conhecida ou vivenciada. O
livro afeiçoa-se, assim, a uma carta-revelação ou testemunho de um mundo
entranhado.
E por que
não dizer ser o escritor aquele que não se assume como um ser que está em todas
as formas e características de seus personagens? Ao não assumir, cria metáforas
de si mesmo que os outros geralmente acreditam serem imaginárias. A tristeza da
bela Remédios de Cem Anos de Solidão era a mesma tristeza de García Márquez. E
para amenizar a dor e trazer esperanças, borboletas sempre estavam voejando ao
seu redor. Um mundo melhor em meios aos destinos angustiantes. Mas aqueles
escritores que se assumem completamente nos seus escritos.
Nada na
poesia de Florbela é estranho ao próprio íntimo da escritora. Nada da escrita
de Clarice é estranho ao âmago da escritora. Nada do revelado por Kafka é
estranho ao próprio Kafka. Eis que suas inspirações são verdadeiras
respirações, ou mesmo reflexos intimistas transpostos aos textos, ou mesmo
vômitos daquilo que não se consegue mais suportar como aflição e sofrimento.
Meu
silêncio é constante, imperecível, eterno. Mas meus trovões sequer se importam
com minha calma e placidez. Tenho o silêncio ao redor e dentro de mim, mas
também o barulho por todo lugar. Tenho memórias, saudades, recordações,
revivencio coisas que já não deviam existir. E tudo dói, martiriza, angustia. E
do silêncio nasce o trovão. E o que escrevo também emerge cheio de ribombos,
relâmpagos, estampidos de dor. Assim também com os demais escritores, bem sei.
Eu não
queria o martírio de Clarice, o fanatismo apaixonado de Florbela nem a
revelação angustiante de Kafka. Mas não tenho querer. Sou ser humano e
escritor.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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