SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 23 de outubro de 2016

JARDIM DE PEDRA


*Rangel Alves da Costa


Talvez o Eclesiastes ainda não tenha se revelado em mim. Procuro acreditar que amanhã será outro dia, que a boa semente enfim vingará e que se cumprirá a sina de o sorriso aparecer depois da tristeza. O Eclesiastes se esqueceu de mim.
Como um dia li de um poeta qualquer, chega um tempo de ser um tempo tão revoltoso que já não serão mais ouvidos os trovões das tempestades nem o estilhaçar vidraças pelos raios que abruptamente caem aos pés. E nem o pingo grosso faz molhar o que já tão inundado.
Todos os dias eu procuro onde deixei meus sentimentos e não há jeito de encontrá-los. Quero ter de volta minha sensibilidade e não consigo mais senti-la dentro de mim. Mãos táteis que apenas tocam e não sentem. Um tanto faz assim de tanta dor. Dói ser assim.
Dói viver perante um jardim de pedra, adiante e dentro de mim. Como um arco-íris sem cor ou uma borboleta sem brilho, eis o matiz do olhar que nunca mais avistou nada além de brumas e cerrações. Tanto faz a lua, tanto faz o sol. A vida e seu inverso, tudo tanto faz.
Eu não queria nem ser assim nem estar assim. Tenho poemas inacabados, escritos ainda em sementes, talvez alguns sonhos que precisam despertar em realidade. Preciso lembrar-me de colocar açúcar no café e de acender a lamparina quando tudo é escuridão.
Jurei jamais sofrer por amor, comprometi-me a jamais lamentar perdas vãs, a não acenar ou entristecer por adeuses que não deveriam continuar. Mas acho que tudo de mim se foi com o que tanto prometi. Quando tudo partiu, então me restei assim perante o jardim de pedra.
Eu era tão diferente. Coisas simples, mas singelas, assim como o entardecer, o sol se pondo, a sonata, o noturno, tudo me fazia tão bem. Acendia um incenso e deitava no tapete flutuando na Barcarola de Offenbach, navegando pelo Danúbio todo azul com Strauss, sentindo conforto espiritual com aquele Jesus de Bach.
De repente foi como os espelhos sumissem de minha frente, as janelas e portas se fechassem, as estações deixassem de ter importância. Quanta importância eu dava à flor viçosa e à folha seca! Mas agora, tanto a flor como a folha se perderam no jardim de pedra.
Comecei a sentir-me assim quando deixei de caminhar ao redor do jardim, de sequer pensar em observar borboletas e colibris voejando sobre as flores. As folhas secas se acumulando infinitamente, o mato tomando os canteiros, meu velho banco quase sumindo pelos outonos.
Sim, ainda avisto adiante begônias, lírios, rosas, cravos, jasmins, girassóis, violetas e outras flores. É amanhecer, e ao sol nascente as flores parecem mais vívidas, mais perfumadas e coloridas. Mas apenas parecem. Mas como distinguir uma flor de outra flor, um perfume de outro perfume, se tudo está petrificado no jardim?
Tanto faz que as flores estejam assim tão vívidas, perfumadas e coloridas. Meus olhos apenas veem, apenas avistam, mas sem qualquer sentimental correspondência. Já não sou sensível a manhãs nem a jardins, já não avisto mais senão o ferro, a ferrugem, a pedra, o pó.
Eu bem poderia ter um muro no lugar da janela e ainda assim teria a mesma manhã. Eu bem poderia avistar túmulos no lugar das plantas floridas e ainda assim não enxergaria nem jazigos nem roseirais. Eu bem poderia ter a noite no lugar do alvorecer e ainda assim tudo seria a mesma visão.
O meu gato não está aqui. Também tanto faz. Talvez o meu cachorro esteja miando e o gato latindo. Não ouço nem vejo nem um nem outro. O que me rodeia o faz por mera insistência. Não sei se ando calçado ou descalço, se grito ou silencio. Penso que retratos antigos são folhas mortas e os lanço à ventania.
Sei que há um jardim além da minha janela. Sei que há um jardim bem depois da porta lateral. Também sei que há amendoeiras imensas e folhagens que caem dentre os muros, formando um tapete ocre-acinzentado. E também que há um velho banco tomado de folhas onde eu costumava sentar ao entardecer.
Sei por que minha memória desperta ao que faz doer. Somente na memória tudo isso ainda vive. Ainda assim tudo chega como punhal, como lâmina afiada, como ponta de espinho, como cálice de sutil veneno.
Não sei, não sei. Não envelheço para a insensatez. Eu queria ouvir uma notícia boa. Eu precisava ter a certeza de que alguma coisa boa acontece na vida. Algo que chegasse como um motivo, um suspiro, um alívio. Mas nada acontece além do jardim de pedra.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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