SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 18 de março de 2017

BANHO NA CHUVA E OUTRAS SAUDADES


*Rangel Alves da Costa


A chuva de ontem é a mesma da chuva de agora, porém com outra significação, outra simbologia, outro modo de avistá-la desde a janela ou a porta da frente. E assim por que nos sertões de antigamente, a chuva caindo não vinha apenas com a promessa de dias melhores, mas também com transformações naqueles instantes molhados.
A chuva nos sertões de ontem, ou de antigamente, parecia descendo envolta em mistério, em magia, em encantamento. Também carregada de mito, lenda, do sobrenatural. Os mais velhos com suas crendices, enquanto os mais jovens sempre reconhecendo na chuvarada muito além de um simples fenômeno natural.
Também muito se diferenciava a chuva ligeira daquela chegada como trovoada. Quando a chuva caía sem grandes alardes na natureza, apenas como uma predisposição climática à molhação da terra, então tudo era visto com alegria e prazer. Porém, se nuvens negras, raios e trovões, antecedessem os pingos d’água, então um verdadeiro deus nos acuda tomava conta de muitos.
Mesmo orando pela chegada das chuvas grandes, mesmo todo dia implorando pela chegada de pingo d’água, aquele sertanejo logo estremecia ante os roncos altos dos trovões, as faíscas estridentes dos raios cortando os céus, os zunidos aterradores que surgiam nos espaços acima das nuvens negras e carregadas. Em instantes assim, as preces pedindo chuva se transformam em rogos de proteção, as rezas de trovoada sem transmudam em pedidos de salvação da vida e da própria terra.
Tal visão concebida possui sua razão. O povo sertanejo era - e ainda continua - extremamente religioso, tendo na fé e na máxima certeza de proteção divina as suas razões maiores de existirem perante tantas agruras e sofrimentos causados pelas longas e duradouras estiagens. E quando os céus acostumados ao sol escaldante de repente se tornam enegrecidos, com trovões e relâmpagos, logo se imagina a fúria divina ante os pecados humanos.
Logicamente que todos desejam as chuvas fartas, as trovoadas, as enchentes, mas ainda assim sempre temem quando os trovões e relâmpagos parecem não cessar e até ameaçar a própria vida. As mãos se unem em orações, as portas são fechadas, todas as luzes apagadas, restando somente os sussurros pedindo clemência. Nada que brilhe ou reluza pode ficar sem panos cobrindo. O que se teme é que sirvam como chamas aos raios e relâmpagos. Por isso que espelhos e panelas são recobertos de panos ou escondidos debaixo das camas.
Mas quando a chuva não é tempestuosa, com faíscas pelos céus e ribombos pelo ar, tudo se transforma em encantamento. Até esperada chuva no sertão vai descendo como verdadeiro milagre, como benção sagrada, como esperança maior de um povo. As portas são abertas, os olhos gritam ante a terra molhada, os corações já florescem a semente que logo será lançada a terra. Desde o primeiro bafo subindo do chão à enxurrada que vai passando, tudo transformando a feição sertaneja.
Nos últimos tempos, as secas persistiram trazendo mais sofrimentos. Desde mais de quatro anos que o sertanejo olha para os céus e nada consegue avistar como esperança boa. A seca continua implacável, o sol implacável e sem dar trégua, o calor de fornalha esturricando corpos e plantas, ainda que pingos de chuva tenham caído nos últimos dias. Desde a última quinta-feira que o tempo nublado de repente faz pingar no chão. E também de repente uma chuva mais forte, mais alentada, de escorrer pelo chão.
Noutros tempos aqui em Poço Redondo, no sertão sergipano do São Francisco, bastava uma chuva assim e a meninada já se danava a correr nua pelo meio da rua, a procurar biqueiras, calçadas de cimento liso e empoçamento d’água. Era uma festa só. Mas de vez em quando apontava uma mãe com chinelo na mão ou outra gritando da porta: Venha pra casa agorinha mermo, seu fi da peste!
Nada que verdadeiramente se compare ao banho de chuva. No passado a meninada corria sua nudez sem problemas, sem olhares maldosos, deixando apenas fluir suas alegrias pelas ruas molhadas, no riachinho que logo corria largo, por todo lugar. Mas apenas um tempo de saudades. Hoje não se vive mais a infância como a antigamente. O novo vai acabando com a doce meninice a cada modismo tecnológico que surge. Infelizmente é assim.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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