*Rangel Alves da Costa
A chuva de ontem é a mesma da chuva de agora,
porém com outra significação, outra simbologia, outro modo de avistá-la desde a
janela ou a porta da frente. E assim por que nos sertões de antigamente, a
chuva caindo não vinha apenas com a promessa de dias melhores, mas também com
transformações naqueles instantes molhados.
A chuva nos sertões de ontem, ou de
antigamente, parecia descendo envolta em mistério, em magia, em encantamento. Também
carregada de mito, lenda, do sobrenatural. Os mais velhos com suas crendices,
enquanto os mais jovens sempre reconhecendo na chuvarada muito além de um
simples fenômeno natural.
Também muito se diferenciava a chuva ligeira
daquela chegada como trovoada. Quando a chuva caía sem grandes alardes na
natureza, apenas como uma predisposição climática à molhação da terra, então
tudo era visto com alegria e prazer. Porém, se nuvens negras, raios e trovões,
antecedessem os pingos d’água, então um verdadeiro deus nos acuda tomava conta
de muitos.
Mesmo orando pela chegada das chuvas grandes,
mesmo todo dia implorando pela chegada de pingo d’água, aquele sertanejo logo
estremecia ante os roncos altos dos trovões, as faíscas estridentes dos raios
cortando os céus, os zunidos aterradores que surgiam nos espaços acima das
nuvens negras e carregadas. Em instantes assim, as preces pedindo chuva se
transformam em rogos de proteção, as rezas de trovoada sem transmudam em pedidos
de salvação da vida e da própria terra.
Tal visão concebida possui sua razão. O povo
sertanejo era - e ainda continua - extremamente religioso, tendo na fé e na
máxima certeza de proteção divina as suas razões maiores de existirem perante
tantas agruras e sofrimentos causados pelas longas e duradouras estiagens. E
quando os céus acostumados ao sol escaldante de repente se tornam enegrecidos,
com trovões e relâmpagos, logo se imagina a fúria divina ante os pecados humanos.
Logicamente que todos desejam as chuvas
fartas, as trovoadas, as enchentes, mas ainda assim sempre temem quando os
trovões e relâmpagos parecem não cessar e até ameaçar a própria vida. As mãos
se unem em orações, as portas são fechadas, todas as luzes apagadas, restando
somente os sussurros pedindo clemência. Nada que brilhe ou reluza pode ficar
sem panos cobrindo. O que se teme é que sirvam como chamas aos raios e
relâmpagos. Por isso que espelhos e panelas são recobertos de panos ou
escondidos debaixo das camas.
Mas quando a chuva não é tempestuosa, com
faíscas pelos céus e ribombos pelo ar, tudo se transforma em encantamento. Até
esperada chuva no sertão vai descendo como verdadeiro milagre, como benção
sagrada, como esperança maior de um povo. As portas são abertas, os olhos
gritam ante a terra molhada, os corações já florescem a semente que logo será
lançada a terra. Desde o primeiro bafo subindo do chão à enxurrada que vai
passando, tudo transformando a feição sertaneja.
Nos últimos tempos, as secas persistiram
trazendo mais sofrimentos. Desde mais de quatro anos que o sertanejo olha para
os céus e nada consegue avistar como esperança boa. A seca continua implacável,
o sol implacável e sem dar trégua, o calor de fornalha esturricando corpos e
plantas, ainda que pingos de chuva tenham caído nos últimos dias. Desde a
última quinta-feira que o tempo nublado de repente faz pingar no chão. E também
de repente uma chuva mais forte, mais alentada, de escorrer pelo chão.
Noutros tempos aqui em Poço Redondo, no sertão
sergipano do São Francisco, bastava uma chuva assim e a meninada já se danava a
correr nua pelo meio da rua, a procurar biqueiras, calçadas de cimento liso e
empoçamento d’água. Era uma festa só. Mas de vez em quando apontava uma mãe com
chinelo na mão ou outra gritando da porta: Venha pra casa agorinha mermo, seu
fi da peste!
Nada que verdadeiramente se compare ao banho
de chuva. No passado a meninada corria sua nudez sem problemas, sem olhares
maldosos, deixando apenas fluir suas alegrias pelas ruas molhadas, no riachinho
que logo corria largo, por todo lugar. Mas apenas um tempo de saudades. Hoje
não se vive mais a infância como a antigamente. O novo vai acabando com a doce
meninice a cada modismo tecnológico que surge. Infelizmente é assim.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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