*Rangel Alves da Costa
Banzo d’alma negra distante da terra. Banzo
d’alma negra pelos laços partidos com as raízes. Banzo d’alma negra pelo mundo
imposto que não é o seu. Banzo d’alma negra como punhalada ferindo as
entranhas.
Banzo d’alma negra desde que foi laçado feito
bicho e jogado em navio para nunca mais retornar. Banzo d’alma negra pelas
correntes, grilhões e laços apertados, ferindo a dignidade e o viver de além.
Banzo d’alma negra pela alma dilacerada de sofrimento e dor.
Banzo que se entranha e se desentranha, que
irrompe do espírito para desacreditar o mundo. Banzo que ecoa no olhar e na
face crispada o incompreensível sentido da vida. Banzo que se nega a aceitar a
realidade e prefere sofrer pelo que restou do passado.
No dialeto escravo, no mundo negro da
escravidão, por banzo se traduz a dor da alma, a melancolia, a tristeza pela
saudade, a nostalgia dilacerando tudo, uma profunda depressão pela ausência da
terra, do berço familiar, da raiz amada. Banzo é o grito aflito no mais íntimo
do ser.
Banzo era o profundo sentimento de melancolia
suportado – ou não – pelo negro escravizado e retirado à força de sua aldeia
africana. Banzo é o entristecimento profundo, a nostalgia devastadora, quando
já noutras terras o negro se sentia dizimado pela distância. Banzo é a saudade
de um tempo em que ainda se reconhecia como gente.
Em estado de banzo, o negro se afastava de
tudo. Não queria comer, não queria beber, não queria falar, não queria sequer
viver. Atônito, amargurado, aflito, de olhos petrificados na dor, era como se
nada mais lhe restasse senão sofrer assim até morrer, até definhar de vez. Nada
mais existia que lhe trouxesse qualquer significação.
Em muitas situações, o banzo provocava
tamanhas consequências nos negros escravizados que estes, quando tomados de
profunda e nostálgica melancolia, simplesmente se negavam a continuar vivendo.
Daí serem frequentes os suicídios entre as populações escravas. Morriam de tristeza,
de saudade, de angústia pela distância do berço de nascimento.
Ora, o que viria à mente humana tornada
escrava e sendo forçada a viver nas distâncias, suportando todo tipo de
sofrimento, sendo tratada como bicho asqueroso? O que pensaria esse ser humano
retirado à força de sua aldeia, acorrentado, jogado em navio negreiro, e depois
vendido em mercado como reles objeto?
Pela dentição – pois quanto mais brancos e
fortes os dentes mais valorizado era o escravo – pagava-se um valor, pela
estatura e porte físico pagava-se outro valor, pela etnia ou origem pagava-se
outro valor, pela situação de ser homem, mulher ou criança, pagava-se outro
valor. Contudo, pagava-se não pelo ser humano, mas pela serventia que o negro
teria nos afazeres do engenho, da casa-grande, da propriedade, do tudo a que
fosse destinado.
Que terrível dor ser apanhado feito bicho
entre os seus, no meio de sua aldeia, e simplesmente acorrentado. E saber que
nunca mais ali retornaria. Quando jogado em navio negreiro, na podridão
desumana, em meio a terríveis maus-tratos, preso pelas mãos e pés, então o
banzo começava a rebuscar sua condição humana. Daí toda a dor do mundo. E
igualmente quando já vendido como escravo e lançado nas agruras do mundo.
No navio negreiro, no pesadelo remansoso das
águas, quanto mais se distanciava mais lhe apertava a saudade. E mais distantes
os parentes, os filhos, os amigos, a aldeia, o casebre, a terra, o fruto da
terra, a lua e o sol de África. Acima de sua cabeça já não voará o grande
pássaro. A comida de fogo de chão jamais será servida em prato de barro. A
língua de seu povo se perderá em mil vozes aflitas.
E assim para a eternidade. Nunca mais
retornar ao lar de um dia. Tornar-se escravo é também suportar a mesma condição
de bicho de canga. No tronco apenas a dor da chibata, mas no coração a dor
maior: a saudade sem fim. O banzo.
Escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
blograngel-sertao.blogspot.com
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