*Rangel Alves da Costa
Enfim, depois de mais de quinhentos, eis que
reencontro meu primo Apoyan já seguindo em direção ao Monte Sabat. Depois
fiquei sabendo que ali se fixara em moradia desde que o Grande Pássaro desceu
suas asas naquele cume.
Antes disso, a última vez que o havia avistado
já ia pra mais de mil anos. Apenas avistei ao longe, voando sobre a montanha
alta onde fazia moradia dentro de uma caverna. Ele voava sim de vez em quando,
tendo asas nos olhos e no ceu da boca. Também era vento quando queria, pois
possuía uma janela aberta bem perto do coração.
Pouco antes desse último avistamento ele
havia descido descalço a montanha, passando sem sentir dor alguma por cima de
espinhos e pontas afiadas de pedras, e encontrado comigo num vale lá embaixo.
Eu pastoreava um pequeno rebanho de ovelhas e havia parado para saciar a sede
num pequeno rio de água cristalina.
Avistei- no espelho da água enquanto estava
agachado fazendo de cuia as duas mãos. Ele ainda vinha um pouco distante, mas o
seu rosto já refletia no espelho molhado. Olhos de profeta, rosto de sábio,
sorriso enigmático, sempre misterioso meu primo Apoyan. O cristalino da água
parecia se encantar com a sua presença.
Também ouvi sua voz quase silenciosa pertinho
de mim, ao lado do meu ouvido, mesmo que ele estivesse de boca fechada e
lentamente caminhando em minha direção. Talvez simplesmente levitasse no seu
passo. O que a voz dizia? Simplesmente: Meu parente, sua sede é menos de água
do que de compreensão das coisas que saciam a vida.
Voltei a cabeça, olhei pra trás, e já o
encontrei a pouca distância, vindo, chegando feito brisa, amparado no seu
cajado. Não precisava de cajado, eu bem sabia disso. Não vacilava na locomoção,
não precisava espantar animais no caminho nem afastar incômodos. Tudo esperava
contente e respeitava a sua passagem. Somente depois pude descobrir a serventia
desse cajado.
Não era velho nem novo, não se podia sequer
imaginar uma idade para quem parece ter nascido para viver eternamente. Possuía
vigor físico e saúde, tudo regrado a uma dieta de folhas orvalhadas. Nesse
alimento estava o sólido e o líquido, segundo ele, e por isso mesmo não
colocava na boca mais nada na vida. Como só se alimentava ao amanhecer, quando
sentia fome molhava o lábio com a seiva das flores silvestres.
Primo, mas que bom te ver, disse ele. Ainda
estava de cócoras à beira do estreito rio, mas nem pude levantar porque pediu
para que eu ficasse onde estava e como estava. Achei estranho porque não me
sentia bem falando com alguém estando de costas, ademais precisava levantar
para dar um longo e apertado abraço.
Fique onde está primo, por favor fique onde
está que já estarei diante de ti. Disse ele. E num segundo já estava sentado, à
moda dos indianos, por cima da lâmina azul de água. Que belo e franco sorriso,
num rosto que não mostrava nem rugas nem outras marcas próprias da idade, mas
tão-somente uma serenidade juvenil que me encantava e enternecia.
Mas primo, quando o encontrei pela última vez
já estava muito mais velho e agora se apresenta diante de mim com esse aspecto
jovial todo. O que aconteceu com você primo Apoyan? Perguntei sem ter a certeza
que seria uma boa pergunta, mas no estado que estava não poderia pensar em algo
mais inteligente.
E após ouvir minha pergunta ele sorriu e fez
o que eu jamais poderia imaginar. Eis que num instante retomou uma face
envelhecida, com longa barba toda branquinha e um semblante digno dos magos e
profetas que tanto se vê em filmes. E agora primo, agora estou à altura do que
esperava me encontrar?
Guardei um profundo e respeitoso silêncio.
Não sabia mais o que dizer diante daquela situação. Então foi ele que,
continuando com a mesma feição envelhecida, me instigou a falar e perguntou se
eu não pensava em perguntar o porquê de seu nome e do seu cajado.
Apenas balancei levemente a cabeça
confirmando que sim. E então ele levantou, depois desceu na água até a cintura,
e disse:
“Se você me conhece como Apoyan, então o meu
nome é Apoyan. O pássaro me chama de grão, a pedra me chama de palavra, a chuva
me chama de nuvem. Então, primo, que nome terei? Prefiro ter o teu nome. O teu
nome é o mais belo e doce da vida. Haverá nome mais bonito que Jesus? Você me
empresta o teu nome?”.
Mas respondi que o meu nome era João, não era
Jesus. Então ele disse que tomaria assim mesmo o meu nome por Jesus. E esse
seria o nome que usaria por um bom tempo, até que eu o recolhesse de volta ao
meu coração.
E sobre o cajado? Perguntei. Era apenas um
presente que há muito eu guardava para te dar e assim guiar melhor teu rebanho,
principalmente quando as ovelhas não quiserem acreditar que existe um Jesus no
coração desse bom pastor.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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