*Rangel Alves da Costa
Numa só
ser humano e duas idades tão diferentes, duas fases existenciais tão distintas,
ainda que um vá gerando o outro, ainda que este nunca deixe de ser aquele. Um
menino e um velho, ou o velho e o menino. O que os separa tanto, será que é a
compleição física, o viço e o vigor, a predisposição para a vida, as marcas da
idade que vão surgindo no rosto, os espelhos embaçados que vão surgindo, os
cabelos tingidos de outra cor, a alegria e a tristeza? Também tudo isso, mas
não apenas isso.
Entre o
menino e o velho há a distância da existência e o fio alongado do varal do
tempo. De um lado o menino sendo tecido e do outro velho tendo sua tessitura
desgastada e quebradiça. De um lado a semente brotando em flor e do outro a
palha acinzentado pelo outono da vida. De um lado o olho brilhando com tanto
sol e tanta lua e do outro o olho anuviado pela opacidade do espelho dos anos.
De um lado a correria, a alegria, o entusiasmo sem fim, e do outro o passo
lento, a curvatura, o cansaço da estrada.
De um lado
o cavalo de pau e a pipa colorida e do outro a bengala ou cajado e o frasco do
remédio controlado. De um lado a traquinagem e o rebuliço, a travessura e o
tanto faz, e do outro o cuidado a cada passo, a cada gesto, a cada situação de
existência. De um lado o menino e do outro o velho. De um lado a flor roubada
para ser deixada à janela, de outro um velho porta-retratos cheio de saudades. Um
velho que também volta a ser menino a partir de certa idade. Um menino que
também já é velho quando se reconhece na vida e perante os perigos da caminhada.
Há no
menino um sonho. Em todo menino há um sonho. Acaso ainda não tenha em si
florescido um entendimento maior, certamente que tudo será como um punhado de
algodão doce, um arco-íris bonito nos horizontes, uma maçã do amor, uma bola de
futebol, uma boneca de pano. Tudo belo e tudo maravilhoso. Daí nascer o sonho
de ser a vida assim também, repleta de alegrias e contentamentos, cheia de
prazeres e inocentes desejos. Não há nada ruim ou difícil nessa idade. É o
tempo do fazer sem se preocupar com as consequências, do experimentar pelo
deleite do instante.
A
brincadeira surge como sustentação da idade, como forma de satisfazer os
instintos mais naturais. Nada mais belo que a chuva caindo e ele mesmo se
lançando em nudez debaixo da chuvarada. Nada mais encorajador do que pular
cerca de quintal para colher goiaba caída no quintal vizinho. Nada mais
delicioso do que se fartar com pirulito de mel ou geladinho de ki-suco. Nada
mais atraente que o pequeno animal, que as pequenas surpresas da natureza, que
o circo que chega e vai logo anunciando o palhaço mais engraçado do mundo.
Contudo,
se já está com mais idade e sua consciência já esteja sendo moldada num plano
maior de realidade, então o que se busca é mesmo aproveitar o que ainda é lhe
permitido pela idade, pois já sabendo que logo sua bola de gude vai ser
transformada em caderno e livro. E assim vai caminhando perante os novos
percursos. É como se um paraíso fosse dando lugar a uma estrada, e nesta um
mundo de desafios novos e desconhecidos. Mas nunca deixa de ser menino, pois a
seiva da vida é exatamente a eterna permanência da criança, ainda que na idade
mais avançada.
Então o
velho olha pela janela, avista o seu passado na estrada, e tenta a todo custo
ser aquele menino de antigamente. Não por que deseje fazer as mesmas
traquinices de outrora, rodopiar vida afora sem medo e sem pressa, mas
simplesmente para relembrar seus doces anos. E nesta nostalgia - tantas vezes
tão tristes como dolorosas - a vontade imensa de novamente ter toda uma vida
pela frente. E fazer tudo aquilo que agora se arrepende de não ter feito, viver
com mais intensidade do que viveu, ser mais menino sem qualquer pressa de
crescer, de ser homem feito.
Dói na idade
esse espelho do tempo, essa janela aberta para o passado. Muitas vezes sequer
se dá conta de que ele é a ainda aquele menino que tanto gostaria de ser. Já
foi criança, já brincou, já fez travessuras. Nada mais pode fazer. As forças
não permitem mais. Entretanto, não deixa de ser tratado como um menino. Como um
paradoxo da existência, o velho acaba voltando ao berço da criancice. É cuidado
como se criança fosse, é acalantado como se criança fosse, é até recriminado
como se criança fosse. Vovô não faça isso, vovô não faça aquilo, vovô age como
se fosse criança.
Tudo como
um mar tão belo nas suas areias, nas suas primeiras águas, no olhar suas
vastidões. Porém, de distância incerta, perigosa, tortuosa, desconhecida. Um
menino como uma concha que repousa alegre ao sabor do vento. Um velho que se
distancia num barco de pouca força para vencer as tormentas.
Escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
blograngel-sertao.blogspot.com
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