*Rangel Alves da Costa
Aviso: As imagens aqui descritas não dizem
respeito a cenas de sexo explícito ou de retratos sangrentos da barbárie humana
e sua desmedida violência, mas representações de um sertão devastado pela seca
que já avança em ininterruptos cinco anos.
O que se avista é uma terra tão vasta quanto
nua e desolada. Pelas distâncias, ou até onde o olho alcança, apenas a acinzentada
devastação. Não há ao menos resquício de verdor nem viço nas plantas ou
folhagens. Em tudo uma paisagem definhando, quebradiça e morta.
Verdade que nos últimos dias, um tiquinho
aqui outro ali, um arremedo de pingo de chuva acabou caindo. Coisinha pouca,
quase nada perante uma terra rachada de sol. Muita chuva teria que cair para
que ao menos o verdor voltasse às pastagens.
Os pingos caídos em nada resolveram da
situação devastadora. O calor aumentou e a desesperança também, pois passado o
Dia de São José sem que as nuvens carregadas chegassem. E sem chuva nesse dia,
pouco há que se esperar nos meses seguintes.
Sem chuva no Dia de São José não haverá
plantação, não haverá colheita, tão cedo não haverá milho de fogueira, de
panela ou de canjica, também não haverá melancia, abóbora, feijão, quiabo, batata,
melão de pasto, nada que rame e brote.
A situação de agora é verdadeiramente
dantesca. O coitado do sertanejo já sem ter o que fazer, tantas vezes apenas
caminha pelas em meio ao solo murcho para avistar as ossadas num canto e
noutro. Restos mortos daquilo que era toda a sua vida de esperança matuta.
Uma situação de enlouquecer qualquer um. Sai
dia e vem dia e a mesma paisagem de sofrimento e devastação. O olho não avista
uma alegria sequer, a boca esqueceu de vez o sorriso, não há qualquer palavra
diante do doloroso espanto de cada instante.
Num mar que virou sertão, as funduras
queimadas guardam por riba os esqueletos, as cabeças ocas, as pontas, os ossos
repartidos como de baleia que desde muito se exauriu no cais. Não são pedras
brancas, pontudas, mas os restos dos animais que tombaram pela fraqueza.
Não há moscas nem urubus, gaviões, carcarás.
As aves carnicentas se fartam da pele magra, seus bicos afiados avançam sobre
as entranhas mortas. E mais carniça logo adiante onde a ultima vaquinha do
sertanejo se estende na terra seca. Uma pisada em falso e a queda para a morte.
A morte caída sobre a morte. Nada mais parece
com vida nesse sertão de desvalia e dor, de miséria e sofrimento. Pote seco,
barriga vazia, moringa rachada, panela sem serventia, prato sem nada. Apenas o
sol descendo pelas frestas e mostrando a agonia de um povo.
Curral de porteira aberta. Não há mais o que
chiqueirar. O estrume petrificado, duro, já sem qualquer marca de casco de
bicho. A cocheira vazia, feia, abandonada. Já desde muito tempo que ali não é
derramado um farelo. O cesto de palmas pendido num canto. Tudo vazio e
abandonado.
As lágrimas também ressecaram nos olhos
sertanejos. Sem água pra beber, sem água pra chorar. O carro-pipa que passa de
mês em mês só deixa um tico d’água pra tudo na vida. Quando tem, cuia d’agua
pra beber, cozinhar o que aparecer, molhar o resto e fazer papa d’água pro
menino que chora sem parar. Quando tem a farinha.
Quintal sem galinha ciscando, malhada sem
calango correndo de lado a outro. Calango se mete agora pelas locas de pedras
fugindo da mão humana. Sem preá ou qualquer caça, de vez em quando um calango é
assado no fogo de chão. E é o que se tem para o dia inteiro. E talvez também na
fome do seguinte.
Dizem que em tempos assim até a palma é pinicada
e colocada em panela. Retiram-se os espinhos e a família se alimenta de sua
carne branca e magricela. Mas não há mais palma, não há mais fruto de
mandacaru, não há mais urtiga pra ser descascada e comida com avidez. A coisa é
feia demais.
O cacto de marrom-acinzentado, murcho,
ressequido, de espinhos sem pontas nem qualquer finura. Até mesmo os espinhos
queimaram de sol e recurvaram à morte. Onde havia carne somente a magreza
ossuda, a pele seca entranhada nos ossos da planta.
Cacto já sem jeito ou feição de cacto.
Xiquexique, mandacaru, facheiro, jurubeba, palma, tudo na finura envernizada de
sol. A planta adaptada ao sertão para resistir às grandes estiagens e agora
agonizando seus últimos suspiros. Desde muito que não brota radiante a flor do
mandacaru.
Na estrada adiante e além, igualmente nos
caminhos curtos e veredas no que era mataria, apenas as pedras miúdas em meio à
areia escaldante e solta. Sem o viço da terra, sem pingo d’agua que assente a
firmeza da terra, de repente os redemoinhos vão misturando poeira e folhagens
mortas.
E cantos fúnebres de uma voz inexistente.
Velório da vaca magra, do bicho, da terra. Mas a tudo a morte ronda e o sertão
inteiro agoniza.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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