*Rangel Alves da Costa
Zezim Bonome, famoso bebedor das ribeiras
sertanejas, já cantava ao pé do balcão: Bebida pede um motivo e sem cachaça não
vivo. Caço um motivo na hora, da saudade que arvora, da dor que não vai embora.
Seja motivo verdadeiro ou não, o que importa é a intenção. E depois do copo
virado outro motivo é achado e um novo copo emborcado. Então bote mais uma aí
que eu tô é apaixonado.
Já Pé de Cana, cujo apelido já dizia bem o
que mais gostava de fazer, chegava chorando no botequim pra todo mundo
perguntar o que estava se passando e logo ele dizia: Joaninha das Cabaças me
traiu, e veja que triste sina a minha. Pra não morrer de desgosto vim aqui pedi
um lenço aos amigos. Mas como ninguém usa lenço, então prefiro uma relepada
boa, uma cachaça de copo cheio que é pra ver se diminui a desdita da maldita.
Famosa era a toada ecoada por Zé das
Quebranças toda vez que entrava no Gineta, um famoso botequim do passado
sertanejo. Descendo o chapéu de couro no balcão antigo, logo entoava: Escute
aqui ô Seu Né essa mágoa sertaneja. Dia e noite na peleja nesse sol que não
troveja, tudo causa um sofrer que só me resta beber pra na vida ter prazer.
Desce um copo bem cheinho que esse cabra tá doidinho e não quer enlouquecer.
E assim os copos são cheios, virados e
revirados por esse mundão afora. Cada um chegando ao pé do balcão com seu
motivo de beberança. Seja na alegria ou na tristeza, pelo prazer em beber ou
pelo motivo da hora, a verdade é que a branquinha não deixa de ser virada.
Então, o cabra chega ao pé do balcão e diz a escolha ou aponta o dedo. O
vendeirim volta de litro à mão e despeja na medida. E o copo de pinga todo
mundo já sabe como é: fundo encardido e o resto amarelado.
O copo é o que menos importa, pois é o sabor
da pinga que mais interessa. Mas existem cachaças e cachaças, pinga de todo
tipo. Tem gente que tanto faz beber uma destilada ou uma artesanal, tanto faz
beber aguardente de rótulo como virar uma lapada de cachaça com raiz de pau.
Gente assim não sabe nem beber nem escolher. O bom bebedor é fiel a uma marca
ou tipo de bebida, nunca mistura no pé de balcão ou diz que tanto faz uma como
outra.
O sertanejo, por exemplo, só bebe cachaça de
rótulo se não houver a casca de pau, preparada no esmero. E quando se fala em
preparo, logo se tem a pinga legítima, branquinha de engenho, despejada em
litro e misturada ao que existe na vegetação ao redor. Casca de pau, raiz,
folha, fruto, tudo serve como mistura. Mas a aceitação é maior quando a planta
é conhecida por todos, assim como angico, bonome, aroeira, hortelã, quixabeira,
umburana, cravo, cidreira, e muito mais.
Além disso, engana-se quem imaginar que beber
cachaça matuta é apenas o ato de virar a dose goela adentro e acabou. Do mesmo
modo, comete injustificável equívoco aquele que disser que a beberança da pinga
do mato é igual a outra qualquer. A sabedoria sertaneja já disse que a cachaça
matuta é tanto remédio como revigorante, é tanto expulsadeira de mazelas como
chamadeira de apetite. Até mesmo os mais velhos dão uma bicada quando querem
afoguear.
No mundo matuto, muitos são aqueles que
chegam ao pé do balcão batendo na barriga e dizendo que ela anda meio
roncadeira, meio desajeitada. Então pede, na dose, o remédio certo. Outros se
previnem das consequências de uma comida pesada ou gordurosa com uma cachaça
preventiva. Já outros até inventam desculpas para ter o copo cheio perto dos
beiços. E se há umbu verde ao lado, perna de preá, caju ou qualquer frutinha
azedada, então a dose se torna em beberança.
Como a cachaça com raiz, folha, semente,
lasca ou fruto do mato, não deve ser vista como aquela destilada de fabricação
em lote, o mesmo se diga com relação ao jeito de beber, ao modo de sorver cada
tiquinho da branquinha de engenho misturado ao sabor da planta escolhida. Pinga
de rótulo se bebe aos poucos, enquanto a casca de pau é virada de vez, mas sem se
esquecer de oferecer um tiquinho ao santo beberrão lá embaixo.
Muitos podem ser os nomes para a mesma
cachaça depois de misturada: casca de pau, raiz de pau, cachaça de mato,
cachaça com casca ou raiz de pau. Nas prateleiras ou nos cantos dos velhos balcões,
os sortimentos para a escolha perfeita. E muitas são as opções para a mistura
da cachaça. Alguns vendeirins misturam a casca ou raiz com aguardente branca
destilada. Contudo, a verdadeira cachaça matuta só presta com a pinga nova de
engenho, branquinha e pura, ainda com o gosto da cana.
Conheço por que já bebi. E muito. Hoje
troquei o bar por sorveteria, como diz a música.
Escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
blograngel-sertao.blogspot.com
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