SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 2 de outubro de 2013

A CASA, O TEMPO, O VENTO


Rangel Alves da Costa*


Nunca mais a ventania chegou esvoaçando as roupas no varal, derrubando o jarro com flores de plástico em cima da velha e rústica mesa, fazendo balançar a gaiola vazia de passarinho.
Nunca mais ventania para levantar saias nem espanar chapéus. Ela chega sim, faz seu percurso de todo entardecer, mas agora encontrando pela frente apenas a porta e a janela abertas, ecoando lá dentro como angustiosas palavras.
A casa, agora abandonada e esquecida no meio do tempo, e onde até a ventania sente saudade de outros idos, é a mesma moradia que outrora acolheu o destino de tantos e mais tantos que um dia avistaram sua malhada. Lar fincado na humildade, pois seus moradores  nunca passaram de simples sobreviventes nos escondidos sertanejos, nunca deixou de dar acolhida a todo viajante que por ali passava.
Num tempo de veredas abertas como estradas pelos sertões, e em cujos caminhos pedregosos e espinhentos a vida necessariamente tinha de passar, não havia um só caminhante ou viajante que não avistasse ao longe a moradia, não chegasse diante de sua cancela e não batesse à sua porta.
Ora, ali era passagem certeira para quem quisesse ir a qualquer lugar. Ou cortava aquelas veredas perigosas ou tinha de caminhar por dentro da mataria, dividindo o passo com todo tipo de bicho e dificuldade. Contudo, o mais perigoso era encontrar bandos de volantes ou de cangaceiros nos escondidos das pedras grandes.
Por isso mesmo que não havia outro jeito senão seguir pela estrada que passava diante da casa. E única moradia em mais de cinco quilômetros de lado a outro. Quase um oásis na aridez sertaneja e milagroso refúgio para todo aquele que batesse à porta implorando dois minutos de descanso, uma cuia d’água, uma xícara de café.
Vendedores ambulantes vindos das distâncias do mundo, quase perdidos em meio aquele desconhecido, ali chegavam cansados, famintos e desesperançados, implorando por tudo na vida que os donos da casa aceitassem receber dois cortes de pano de chita em troca de um prato de qualquer coisa e uma caneca de água de moringa.
Gente desconhecida, vaqueiros de outras paragens, viajantes a negócio, emissários de coronéis e poderosos, todos, indistintamente, enchiam os olhos de brilho depois da curva da estrada e da maravilhosa visão daquela casa. E só faltavam enlouquecer se sentiam pelo ar o cheiro forte do café torrado ou do cuscuzeiro espalhando aquele cheiro inebriante. E cuscuz de verdade, de milho ralado mesmo.
Foi nessa moradia que Lampião e seu bando se amoitaram, exaustos e famintos, certa feita. O Capitão, avistando umas cabeças de bode pastando ao redor, mandou que derrubasse um e depois do almoço servido dissesse quanto era a conta, pois tinha prazer em retribuir quem lhe servia em momento de tão grande precisão.
E foi nessa ocasião que se deu a conhecida história da reclamação de um dos cangaceiros acerca da comida sem sal e a ação exemplar levada a efeito pelo Capitão. Faminto como estava, mais de dois dias sem comer nada que prestasse, e o cabra ainda se achou no direito de dizer que a carne de bode estava sem sal.
Então Lampião chamou o dono da casa e perguntou-lhe se ainda tinha sal na despensa. E homem voltou da cozinha trazendo um pacote quase cheio. Em seguida o mal agradecido foi chamado à presença do chefe e deste recebeu a ordem de se fartar de todo aquele sal colocado diante de suas fuças. E o homem se salgou todinho por dentro. E sem poder reclamar um tantinho assim.
Muitas outras histórias se passaram desde a cancela daquela casa. Pela estrada e seus viajantes chegavam as notícias, as encomendas e as surpresas. Sabiam das guerras quando estas nem mais existiam; tomavam conhecimento de mortes depois que ninguém pranteava mais o falecido; viviam mais das notícias do vento do que mesmo da realidade existente muito além.
O último visitante foi um caixeiro viajante. O almofadinha ultrapassou a cancela já na boca da noite, mas já na manhã seguinte nenhum outro viajante, por mais que batesse à porta ou à janela, conseguiu mais matar sua sede ou descer do animal para um descanso. Logo ao alvorecer, por motivos que até hoje ninguém sabe, a casa foi fechada de vez.
Até hoje, muitos anos depois, os sertanejos se controvertem acerca do que realmente aconteceu com a família. Uns asseveram que nunca saíram de lá; se trancaram para sempre até não restar mais ninguém. Outros afirmam que seguiram estrada adiante em busca de dias melhores, vez que a seca naquela época não mais permitia ter água na moringa para oferecer a quem por ali passasse.
A verdade é que a casa, agora quase caindo aos pedaços, continua por lá contando sua história. Ou histórias de tempos idos. E quem quiser saber de tudo pergunte ao vento. Somente ele, que tanto conversa e murmureja lá dentro, sabe de tudo.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com   

Um comentário:

Anônimo disse...

CARO PROFESSOR RANGEL: Um bom-dia de paz e serenidade.
Esta sua crônica me faz lembrar os velhos tempos nas veredas da minha região.
Nos quatro quilômetros entre meu pequeno povoado - Bela Vista -, e o povoado de Retiro onde havia uma escola com a quinta série, existiam no referido percurso dez casas - é claro - com seus moradores. Hoje, com a exceção de uma delas que os marimbondos relutam em não abandoná-la, e a porta nunca se fecha, as demais foram transformadas em escombros. Se alguém - por um "transtorno" qualquer - sair despido de um extremo ao outro da trajetória, tenha certeza que não será preso nem advertido, uma vez que não vai encontrar nem um outro vivente humano. Assim são as coisas do nosso SERTÃO.
Abraços,
Antonio Oliveira - Serrinha-Ba.