Rangel Alves da
Costa*
Nunca mais
a ventania chegou esvoaçando as roupas no varal, derrubando o jarro com flores
de plástico em cima da velha e rústica mesa, fazendo balançar a gaiola vazia de
passarinho.
Nunca mais
ventania para levantar saias nem espanar chapéus. Ela chega sim, faz seu
percurso de todo entardecer, mas agora encontrando pela frente apenas a porta e
a janela abertas, ecoando lá dentro como angustiosas palavras.
A casa,
agora abandonada e esquecida no meio do tempo, e onde até a ventania sente
saudade de outros idos, é a mesma moradia que outrora acolheu o destino de
tantos e mais tantos que um dia avistaram sua malhada. Lar fincado na humildade,
pois seus moradores nunca passaram de
simples sobreviventes nos escondidos sertanejos, nunca deixou de dar acolhida a
todo viajante que por ali passava.
Num tempo
de veredas abertas como estradas pelos sertões, e em cujos caminhos pedregosos
e espinhentos a vida necessariamente tinha de passar, não havia um só
caminhante ou viajante que não avistasse ao longe a moradia, não chegasse
diante de sua cancela e não batesse à sua porta.
Ora, ali
era passagem certeira para quem quisesse ir a qualquer lugar. Ou cortava
aquelas veredas perigosas ou tinha de caminhar por dentro da mataria, dividindo
o passo com todo tipo de bicho e dificuldade. Contudo, o mais perigoso era
encontrar bandos de volantes ou de cangaceiros nos escondidos das pedras
grandes.
Por isso
mesmo que não havia outro jeito senão seguir pela estrada que passava diante da
casa. E única moradia em mais de cinco quilômetros de lado a outro. Quase um
oásis na aridez sertaneja e milagroso refúgio para todo aquele que batesse à
porta implorando dois minutos de descanso, uma cuia d’água, uma xícara de café.
Vendedores
ambulantes vindos das distâncias do mundo, quase perdidos em meio aquele
desconhecido, ali chegavam cansados, famintos e desesperançados, implorando por
tudo na vida que os donos da casa aceitassem receber dois cortes de pano de
chita em troca de um prato de qualquer coisa e uma caneca de água de moringa.
Gente
desconhecida, vaqueiros de outras paragens, viajantes a negócio, emissários de
coronéis e poderosos, todos, indistintamente, enchiam os olhos de brilho depois
da curva da estrada e da maravilhosa visão daquela casa. E só faltavam enlouquecer
se sentiam pelo ar o cheiro forte do café torrado ou do cuscuzeiro espalhando
aquele cheiro inebriante. E cuscuz de verdade, de milho ralado mesmo.
Foi nessa
moradia que Lampião e seu bando se amoitaram, exaustos e famintos, certa feita.
O Capitão, avistando umas cabeças de bode pastando ao redor, mandou que
derrubasse um e depois do almoço servido dissesse quanto era a conta, pois
tinha prazer em retribuir quem lhe servia em momento de tão grande precisão.
E foi
nessa ocasião que se deu a conhecida história da reclamação de um dos
cangaceiros acerca da comida sem sal e a ação exemplar levada a efeito pelo Capitão.
Faminto como estava, mais de dois dias sem comer nada que prestasse, e o cabra
ainda se achou no direito de dizer que a carne de bode estava sem sal.
Então
Lampião chamou o dono da casa e perguntou-lhe se ainda tinha sal na despensa. E
homem voltou da cozinha trazendo um pacote quase cheio. Em seguida o mal
agradecido foi chamado à presença do chefe e deste recebeu a ordem de se fartar
de todo aquele sal colocado diante de suas fuças. E o homem se salgou todinho
por dentro. E sem poder reclamar um tantinho assim.
Muitas
outras histórias se passaram desde a cancela daquela casa. Pela estrada e seus
viajantes chegavam as notícias, as encomendas e as surpresas. Sabiam das
guerras quando estas nem mais existiam; tomavam conhecimento de mortes depois
que ninguém pranteava mais o falecido; viviam mais das notícias do vento do que
mesmo da realidade existente muito além.
O último
visitante foi um caixeiro viajante. O almofadinha ultrapassou a cancela já na
boca da noite, mas já na manhã seguinte nenhum outro viajante, por mais que
batesse à porta ou à janela, conseguiu mais matar sua sede ou descer do animal
para um descanso. Logo ao alvorecer, por motivos que até hoje ninguém sabe, a
casa foi fechada de vez.
Até hoje,
muitos anos depois, os sertanejos se controvertem acerca do que realmente
aconteceu com a família. Uns asseveram que nunca saíram de lá; se trancaram
para sempre até não restar mais ninguém. Outros afirmam que seguiram estrada
adiante em busca de dias melhores, vez que a seca naquela época não mais
permitia ter água na moringa para oferecer a quem por ali passasse.
A verdade
é que a casa, agora quase caindo aos pedaços, continua por lá contando sua
história. Ou histórias de tempos idos. E quem quiser saber de tudo pergunte ao
vento. Somente ele, que tanto conversa e murmureja lá dentro, sabe de tudo.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
CARO PROFESSOR RANGEL: Um bom-dia de paz e serenidade.
Esta sua crônica me faz lembrar os velhos tempos nas veredas da minha região.
Nos quatro quilômetros entre meu pequeno povoado - Bela Vista -, e o povoado de Retiro onde havia uma escola com a quinta série, existiam no referido percurso dez casas - é claro - com seus moradores. Hoje, com a exceção de uma delas que os marimbondos relutam em não abandoná-la, e a porta nunca se fecha, as demais foram transformadas em escombros. Se alguém - por um "transtorno" qualquer - sair despido de um extremo ao outro da trajetória, tenha certeza que não será preso nem advertido, uma vez que não vai encontrar nem um outro vivente humano. Assim são as coisas do nosso SERTÃO.
Abraços,
Antonio Oliveira - Serrinha-Ba.
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