Rangel Alves da
Costa*
Pode
faltar tudo numa cidade, desde parteira ao sacristão, desde carteiro ao
entregador de leite, mas doido não pode faltar de jeito nenhum. Aliás, o doido
é a própria simbologia da insanidade urbana, pois sempre haverá de ter um
escolhido diante de tantos.
O doido se
torna tão característico e próprio do lugar que ninguém acostuma viver sem suas
graças, seus destrambelhamentos, suas maluquices. E também seus enfurecimentos,
suas transformações e perigosas atitudes. Ainda assim, mesmo doido que cause
perigo e temor, sempre fará falta no cotidiano citadino.
Por isso
mesmo que em todo lugar há um doido símbolo, outros tantos doidos de gesto e
ação, e muito mais nos escondidos da falsa sanidade. Ademais, absolutamente
ninguém pode ser tido e havido como mentalmente sadio. E viver normalmente não
significa muita coisa, bastando lembrar os tresloucamentos do pai da teoria da
relatividade. Aquela língua de Einstein é coisa de gente sadia?
Verdade é
que há doido de todo tipo e todo jeito; mais e menos doido; doido de lua e de
sol; de pedra na mão ou sorriso na face. Tem doido que já nasce assim,
mentalmente afetado; outros que vão sendo chamados pela loucura; e ainda outros
que se mantêm na perigosa fronteira. E estes sãos os mais perigosos que possam
existir, pois sempre na feição comum do povo. Na minha e na sua loucura em
estado latente.
Afirmo que
nós, os ditos normais, somos os doidos mais perigosos porque reputamos como
loucura a ação do mentalmente afetado e fingimos não perceber que de repente
agimos de forma até mesmo inaceitável para um doido varrido. Quantas vezes,
mesmo tendo plena consciência da gravidade do erro, simplesmente abrimos a
cancela dos piores impulsos?
Mas os
doidos são eles, são os outros, continuamos dizendo. Numa fragilíssima tese de
defesa, continuamos afirmando que os doidos são aqueles que jogam pedras nos
passantes, que ameaçam com paus e o que tiver adiante, que conversam sozinhos,
que vivem no mundo da lua. Dizemos que os doidos enlouquecem ainda mais nas
noites de lua cheia, em determinadas estações do ano, em determinados momentos
do dia.
Tudo isso
imputamos a eles, mas fazemos loucuras o dia inteiro. Fazemos muito mais, e
muito pior. E ninguém me pretenda dizer que é normal do ser humano praticar o
mal premeditadamente; agir contrariamente à lógica da vida, ao senso de
responsabilidade, ao dever para consigo mesmo. Ninguém me venha dizendo que é
próprio do instinto humano a propensão assassina, a sanha destruidora, a
inversão da racionalidade.
É reconhecida
loucura experimentar o que vicia, transforma, humilha e destrói; será sempre
insano fingir que não enxerga as dolorosas realidades e não sente o quanto é degradante
se entregar aos fictícios prazeres; não passa de absoluta insanidade enxergar
apenas nos outros os erros costumeira e gravosamente cometidos.
Ora,
diante dos ditos normais, os tidos como doidos são seres inofensivos, são
borboletas em jardins, são colibris matinais. Doce é a loucura do querer voar
em direção à lua, de se apaixonar pelo seu clarão e disso fazer uma razão de
viver; compreensível é o olhar amedrontado, desconfiado, rápido, querendo
encontrar o desconhecido; aceitável é a manifestação afoita, exacerbada,
incomum, pois diferente apenas para quem não compreende a loucura. E não se
aceita como ser também transtornado.
Queiram
aceitar ou não, mas em cada ser humano tido como normal não há apenas um louco,
um doido, um insano, mas três. Isso mesmo, cada pessoa normal é doida três
vezes. Por consequência, há três doidos dentro de mim e de você. O primeiro é o
doido reconhecível na atitude insana levada a efeito de vez em quando; o
segundo é o doido interior, interno, intimista, aquele reconhecível pela
própria pessoa, porém temendo revelar aos demais; e o terceiro é o doido
instalado no hospício chamado mundo.
Dos três
doidos existentes em nós, os dois primeiros podem conviver conosco sem qualquer
problema, bastando que reconheçamos nossas loucuras e que compreendamos nossas
propensões íntimas. Mas a terceira forma de loucura afeta o homem de tal modo
que este se vê sem saída. E o pior é que os seus sintomas são crescentes e
tendem a explodir a qualquer instante. E tudo porque ninguém suporta mais viver
num mundo de loucos, de atitudes tão alucinadas, sem ter de agir na
conformidade do que se pede. Ou seja, ser também absolutamente psicótico.
Loucuras
no trânsito, nas relações pessoais, nas ações e atitudes, em tudo. Impossível,
pois, viver num mundo completamente louco, ao redor de maníacos e alucinados, e fora dos muros de seu hospício.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário