SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

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quarta-feira, 30 de outubro de 2013

TRÊS DOIDOS


Rangel Alves da Costa*


Pode faltar tudo numa cidade, desde parteira ao sacristão, desde carteiro ao entregador de leite, mas doido não pode faltar de jeito nenhum. Aliás, o doido é a própria simbologia da insanidade urbana, pois sempre haverá de ter um escolhido diante de tantos.
O doido se torna tão característico e próprio do lugar que ninguém acostuma viver sem suas graças, seus destrambelhamentos, suas maluquices. E também seus enfurecimentos, suas transformações e perigosas atitudes. Ainda assim, mesmo doido que cause perigo e temor, sempre fará falta no cotidiano citadino.
Por isso mesmo que em todo lugar há um doido símbolo, outros tantos doidos de gesto e ação, e muito mais nos escondidos da falsa sanidade. Ademais, absolutamente ninguém pode ser tido e havido como mentalmente sadio. E viver normalmente não significa muita coisa, bastando lembrar os tresloucamentos do pai da teoria da relatividade. Aquela língua de Einstein é coisa de gente sadia?
Verdade é que há doido de todo tipo e todo jeito; mais e menos doido; doido de lua e de sol; de pedra na mão ou sorriso na face. Tem doido que já nasce assim, mentalmente afetado; outros que vão sendo chamados pela loucura; e ainda outros que se mantêm na perigosa fronteira. E estes sãos os mais perigosos que possam existir, pois sempre na feição comum do povo. Na minha e na sua loucura em estado latente.
Afirmo que nós, os ditos normais, somos os doidos mais perigosos porque reputamos como loucura a ação do mentalmente afetado e fingimos não perceber que de repente agimos de forma até mesmo inaceitável para um doido varrido. Quantas vezes, mesmo tendo plena consciência da gravidade do erro, simplesmente abrimos a cancela dos piores impulsos?
Mas os doidos são eles, são os outros, continuamos dizendo. Numa fragilíssima tese de defesa, continuamos afirmando que os doidos são aqueles que jogam pedras nos passantes, que ameaçam com paus e o que tiver adiante, que conversam sozinhos, que vivem no mundo da lua. Dizemos que os doidos enlouquecem ainda mais nas noites de lua cheia, em determinadas estações do ano, em determinados momentos do dia.
Tudo isso imputamos a eles, mas fazemos loucuras o dia inteiro. Fazemos muito mais, e muito pior. E ninguém me pretenda dizer que é normal do ser humano praticar o mal premeditadamente; agir contrariamente à lógica da vida, ao senso de responsabilidade, ao dever para consigo mesmo. Ninguém me venha dizendo que é próprio do instinto humano a propensão assassina, a sanha destruidora, a inversão da racionalidade.
É reconhecida loucura experimentar o que vicia, transforma, humilha e destrói; será sempre insano fingir que não enxerga as dolorosas realidades e não sente o quanto é degradante se entregar aos fictícios prazeres; não passa de absoluta insanidade enxergar apenas nos outros os erros costumeira e gravosamente cometidos.
Ora, diante dos ditos normais, os tidos como doidos são seres inofensivos, são borboletas em jardins, são colibris matinais. Doce é a loucura do querer voar em direção à lua, de se apaixonar pelo seu clarão e disso fazer uma razão de viver; compreensível é o olhar amedrontado, desconfiado, rápido, querendo encontrar o desconhecido; aceitável é a manifestação afoita, exacerbada, incomum, pois diferente apenas para quem não compreende a loucura. E não se aceita como ser também transtornado.
Queiram aceitar ou não, mas em cada ser humano tido como normal não há apenas um louco, um doido, um insano, mas três. Isso mesmo, cada pessoa normal é doida três vezes. Por consequência, há três doidos dentro de mim e de você. O primeiro é o doido reconhecível na atitude insana levada a efeito de vez em quando; o segundo é o doido interior, interno, intimista, aquele reconhecível pela própria pessoa, porém temendo revelar aos demais; e o terceiro é o doido instalado no hospício chamado mundo.
Dos três doidos existentes em nós, os dois primeiros podem conviver conosco sem qualquer problema, bastando que reconheçamos nossas loucuras e que compreendamos nossas propensões íntimas. Mas a terceira forma de loucura afeta o homem de tal modo que este se vê sem saída. E o pior é que os seus sintomas são crescentes e tendem a explodir a qualquer instante. E tudo porque ninguém suporta mais viver num mundo de loucos, de atitudes tão alucinadas, sem ter de agir na conformidade do que se pede. Ou seja, ser também absolutamente psicótico.
Loucuras no trânsito, nas relações pessoais, nas ações e atitudes, em tudo. Impossível, pois, viver num mundo completamente louco, ao redor de maníacos e alucinados,  e fora dos muros de seu hospício.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com  

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