SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 5 de outubro de 2013

A MENINADA FELIZ


Rangel Alves da Costa*


Sou de um tempo - e não muito distante - de meninada feliz. E uma felicidade provocada pela infância vivida sem disfarces, exagerados regramentos, maldades ou proibições. Tudo vivido numa idade onde era permitido e se permitia ser apenas criança e aproveitar ao máximo de suas doces oportunidades.
Meninada de nudez em dias de chuva, se deixando inundar debaixo das biqueiras, correndo de canto a outro extravasando a molhação. Trovoada ou chuvarada qualquer, e logo se dava um jeito de fugir dos olhos da família e ir correndo se reunir com os outros devidamente enlameados, respingando, numa teimosia que somente crianças podem se permitir.
Quando a mãe procurava o filho pelos cantos da casa e não encontrava, então a janela se abria para os gritos apavorantes. Ainda que fossem muitas as promessas de uma surra bem dada, de castigos os mais diversos, era como se a meninada nada ouvisse. E achando pouco a molhação pelas ruas, de vez em quando seguiam em correria em direção ao riachinho.
Que cena mais encantadora um banho de riacho em dias de chuvas. Todos devidamente pelados, preocupados apenas em demonstrar afoiteza, se jogavam nas águas salobras para esquentar os corpos já querendo tremer por causa das águas novas. E tantas vezes ali envoltos em distrações e de repente uma mãe ou um pai era avistado na beirada já de chinelo à mão. Pra casa agora, seu cabra teimoso. E vá logo preparando a bunda pra apanhar! Tal ameaça logo surgia.
Não há como não pensar em tais tempos como idos felizes, repletos de vivências e encantamentos. Os castigos apenas temperavam as preocupações, mas logo tudo se transformava em nova arreliação. Soltar pipa ao entardecer, jogar o pinhão certeiro, brincar de bola de gude ou de futebol de botão com jogador preparado na forminha deixada em cima da brasa. Ir para o mato ao redor e de lá voltar com o mais belo cavalo alazão que podia existir: um belíssimo cavalo de pau.
Brincar de se esconder, de vaqueirama com ponta de vaca; ser menino afortunado com maços e mais maços de notas feitas de carteira vazia de cigarro. Dependendo da marca do cigarro, bastava duas notas para comprar um boi valente, ou seja, uma ponta de vaca trabalhada com lixa e até recoberta com o óleo de cozinha. O pelo do bicho tinha de estar brilhando.
Era realmente uma meninada feliz, contente, brincalhona, incansável na sua busca de aventuras. Amiga do sol e da lua, da natureza e dos caminhos, tudo parecia abrir suas portas para que a criançada cumprisse sua sina de transformar tudo em prazer, distração e descoberta.
Meia velha servia como a melhor e mais disputada bola que pudesse existir. Os destroços eram costurados por uma boa mão, enchidos com molambos ou folhagens, e depois todos saíam em correria para um descampado espinhento e pedregoso, tão carinhosamente chamado de campinho. E de repente um chutão em direção ao varal de roupas ainda molhadas.
Traves de pedras e limites até onde a bola pudesse alcançar. Acaso o chute fosse forte e a pelota entrasse na mataria, então o próprio jogador estava incumbido de providenciar sua volta ao solo árido. E todos descalços, driblando, chutando, defendendo, dando passes por cima de espinhos e pedras, mas sem ninguém jamais reclamar que estava com os pés feridos, ainda que massacrados pelas durezas.
Tudo num tempo de ontem. O trem que seguiu adiante não retornou à mesma estação. Agora tão diferente, tão frio e mecanicamente desgastante. Os brinquedos infantis deram lugar às parafernálias modernas. Dificilmente se encontra uma criança brincando debaixo da lua ou cortando estrada com seu carrinho de madeira. A nudez da infância agora é avistada com outros olhos. E a sua inocência foi transformada em perigosas e antecipadas lições.
O que se tem hoje é a idade da infância, porém sem dela usufruir a verdadeira felicidade de ser criança.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

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