Rangel Alves da
Costa*
Sou de um
tempo - e não muito distante - de meninada feliz. E uma felicidade provocada
pela infância vivida sem disfarces, exagerados regramentos, maldades ou
proibições. Tudo vivido numa idade onde era permitido e se permitia ser apenas
criança e aproveitar ao máximo de suas doces oportunidades.
Meninada
de nudez em dias de chuva, se deixando inundar debaixo das biqueiras, correndo
de canto a outro extravasando a molhação. Trovoada ou chuvarada qualquer, e
logo se dava um jeito de fugir dos olhos da família e ir correndo se reunir com
os outros devidamente enlameados, respingando, numa teimosia que somente
crianças podem se permitir.
Quando a
mãe procurava o filho pelos cantos da casa e não encontrava, então a janela se abria
para os gritos apavorantes. Ainda que fossem muitas as promessas de uma surra
bem dada, de castigos os mais diversos, era como se a meninada nada ouvisse. E
achando pouco a molhação pelas ruas, de vez em quando seguiam em correria em
direção ao riachinho.
Que cena
mais encantadora um banho de riacho em dias de chuvas. Todos devidamente
pelados, preocupados apenas em demonstrar afoiteza, se jogavam nas águas
salobras para esquentar os corpos já querendo tremer por causa das águas novas.
E tantas vezes ali envoltos em distrações e de repente uma mãe ou um pai era
avistado na beirada já de chinelo à mão. Pra casa agora, seu cabra teimoso. E
vá logo preparando a bunda pra apanhar! Tal ameaça logo surgia.
Não há
como não pensar em tais tempos como idos felizes, repletos de vivências e
encantamentos. Os castigos apenas temperavam as preocupações, mas logo tudo se
transformava em nova arreliação. Soltar pipa ao entardecer, jogar o pinhão
certeiro, brincar de bola de gude ou de futebol de botão com jogador preparado
na forminha deixada em cima da brasa. Ir para o mato ao redor e de lá voltar
com o mais belo cavalo alazão que podia existir: um belíssimo cavalo de pau.
Brincar de
se esconder, de vaqueirama com ponta de vaca; ser menino afortunado com maços e
mais maços de notas feitas de carteira vazia de cigarro. Dependendo da marca do
cigarro, bastava duas notas para comprar um boi valente, ou seja, uma ponta de
vaca trabalhada com lixa e até recoberta com o óleo de cozinha. O pelo do bicho
tinha de estar brilhando.
Era
realmente uma meninada feliz, contente, brincalhona, incansável na sua busca de
aventuras. Amiga do sol e da lua, da natureza e dos caminhos, tudo parecia
abrir suas portas para que a criançada cumprisse sua sina de transformar tudo
em prazer, distração e descoberta.
Meia velha
servia como a melhor e mais disputada bola que pudesse existir. Os destroços
eram costurados por uma boa mão, enchidos com molambos ou folhagens, e depois
todos saíam em correria para um descampado espinhento e pedregoso, tão
carinhosamente chamado de campinho. E de repente um chutão em direção ao varal
de roupas ainda molhadas.
Traves de
pedras e limites até onde a bola pudesse alcançar. Acaso o chute fosse forte e
a pelota entrasse na mataria, então o próprio jogador estava incumbido de
providenciar sua volta ao solo árido. E todos descalços, driblando, chutando,
defendendo, dando passes por cima de espinhos e pedras, mas sem ninguém jamais
reclamar que estava com os pés feridos, ainda que massacrados pelas durezas.
Tudo num
tempo de ontem. O trem que seguiu adiante não retornou à mesma estação. Agora
tão diferente, tão frio e mecanicamente desgastante. Os brinquedos infantis
deram lugar às parafernálias modernas. Dificilmente se encontra uma criança
brincando debaixo da lua ou cortando estrada com seu carrinho de madeira. A
nudez da infância agora é avistada com outros olhos. E a sua inocência foi
transformada em perigosas e antecipadas lições.
O que se
tem hoje é a idade da infância, porém sem dela usufruir a verdadeira felicidade
de ser criança.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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