Rangel Alves da Costa*
Ao menos na terra de onde vim - sertão de
conceito maior -, denomina-se pé de briga o motivo ensejador de uma discórdia,
de uma discussão, de uma pega-pa-capá mesmo. Pode ser por coisa besta, motivo
fútil, de aparência irrelevante, mas que pode ganhar contornos com
consequencias inimagináveis.
Assim, o pé de briga é exatamente o pontapé
inicial do arranca-rabo, que pode ser ocasionado por um olhar que o outro não
gostou, uma palavra que chegou ao ouvido de forma aviltante, um gesto
provocador, uma atitude tendente a gerar confusão. Muitas vezes uma coisa
insignificante, besteira mesmo.
Já soube de casos em que o pé de briga era
realmente coisa sem pé nem cabeça. Certa feita uma arruaça foi formada porque o
valentão ofereceu uma dose de bebida e alguém se negou a tomar; uma vizinha
jogava lixo no outro lado do muro esperando somente a outra vizinha achar ruim.
Quando esta foi reclamar, então a briga já estava feita, preparada, arrumada
pela semeadora da discórdia.
A mocinha vestiu uma sainha que quase
mostrava os fundilhos, saiu à rua se rebolando, um gaiato deu psiu e ela não
gostou. Correu e foi dizer ao pai que o outro lhe havia chamado disso e
daquilo. O pé de briga tava feito. Já uma solteirona, encalhada de muitos anos,
partia pra violência, pra esbofetear e destruir quem ousasse dizer que ela já
contava com mais de quarenta anos. Era chamá-la de titia que a desgraceira estava
feita.
Os meninos sempre jogavam bola tranquilamente
no descampado. Eis que a danada da mulher ia devagarzinho com um cesto de roupa
lavada e estendia no varal que ficava bem atrás da trave. Depois voltava e
ficava escondida olhando quando alguém chutava uma bola mais forte e atingia
qualquer pano estendido.
Doidinha pra arrumar encrenca, pra soltar o
verbo impuro. Assim que a bola atingia um calçolão ela partia de lá esculhambando
com tudo e todos, de vara na mão querendo agredir. Como um parente da meninada
sempre chegava para intervir, então o banzé estava feito, em estado de
injuriamento. Ora, o pé de briga já havia sido a premeditação da mulher.
Por não ter arranjado namorado na quermesse,
a mocinha solitária e carente ficou de mal de fogo a sangue de Santo Antonio, o
casamenteiro. Tirou o coitado de casa e o colocou de cabeça pra baixo na porta
da igreja. Com cabeça enterrada no chão e as perninhas pro ar, o coitado do
casamenteiro recebia o que não merecia.
Mas dizem que ele a perdoou e arrumou um pé
de briga para sua companhia até quando ele suportasse tanto mandonismo,
exigências e aborrecimentos da parte dela. Assim que o esposo botava o pé na
porta e lá vinha a dita perguntando onde estava, com quem conversou, o que fez.
Como ele não suportava tal tipo de coisa, tudo era pé de briga. E Santo Antonio
não pôde fazer mais nada.
Mas certo dia uma vizinha passou pela frente
do murinho baixo da outra vizinha, cumprimentou-a e disse, num tom amigueiro e sem
querer ofender, que uma plantinha parecia não ter sido aguada, pois estava
murchando. A outra não gostou e disse que o que estava murchando era a cara
dela, tão feia que parecia um maracujá de fim de feira. Então o pé de briga
começou a ferver.
A ofendida respondeu na hora e disse que nem
pra maracujá a outra servia mais pra ser, senão uma melancia velha e podre que
nem os porcos queriam experimentar como lavagem. “Melancia podre é você, sua
sirigaita, sua quenga, gaiera, que nessa idade não se respeita e vive
escondendo macho debaixo da cama”. Prestou não.
“O que, sua filha da puta safada, ladrona de
homem dos outros, rapariga rampeira que tem um caso até com o entregador de
leite. Pensa que eu não vejo não, é? Sua vagabunda imprestável...”. E a coisa
esquentava demais.
“Todo mundo sabe que nem você nem sua raça
valem um conto, é tudo gente safada, ladrona, bandida de marca maior, e
qualquer dia o que não for preso vai contar história debaixo da terra...”. Vixe
Maria!
“Você prova o que tá dizendo? Bandida é você,
puta safada, sem vergonha, que compra e não paga a ninguém. Não sou eu quem
vive recebendo cobrança na porta noite e dia...”. Lascou-se.
“Espere aí que você vai ver o que é bom pra
tosse agorinha mesmo...”. E partiu pra cima da outra, voando em direção aos
cabelos. Houve contra-ataque. Sopapos daqui e de acolá, madeixas espalhadas por
todo lugar.
Dizem que até hoje brigam. E tudo nasceu do
nada, de uma besteira, de um pé de briga que mais cedo ou mais tarde haveria de
acontecer. E o que seria vizinhança senão o verdadeiro e autêntico pé de briga?
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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