Rangel Alves da
Costa*
Dizem que num sertão bem distante, terra
de gente humilde e trabalhadora, de sofrimento e esperança, muitas vezes o
alento do homem desesperançado com as estiagens infindas era o pontear a viola
nos fins da tarde de vento leve ou no anoitecer de lua imensa, luar sertanejo
em toda sua magnitude.
E assim estavam dois velhos caipiras
adiante de uma casinha, sentados em tamboretes, tendo ao lado uma pinguinha com
raiz de casca de pau, e uma velha viola de pinho deitada nos braços de um
deles. Não demoraria e surgiria uma nota, depois um ponteio e uma toada de
amores antigos e relembranças tantas.
E este se voltou para o amigo e disse
que muitas vezes aquela mesma solidão sertaneja em que se encontravam já havia
servido de motivo pra muito violeiro e cantador rabiscar a melhor poesia matuta.
E depois transformar as palavras bonitas e singelas em canções da vida inteira,
servindo não só para o homem do campo como para o da cidade.
Então o outro confirmou ser verdade o
que o amigo dizia e ajuntou dizendo que existia música caipira enraizada apenas
na lida do homem matuto, mas que, pelas lições contidas em cada verso, se
elevava nas mesmas qualidades dos ensinamentos bíblicos. E lembrou-se de duas,
que cantarolou desafinado, com a ajuda do som da viola. A primeira foi “Couro
de Boi”, de Teddy Vieira e Palmeira, recitando a primeira parte:
“Conheço um velho ditado que é do tempo
do zagaio/ um pai trata dez filhos, dez filhos não trata um pai/ Sentindo o
peso dos anos, sem poder mais trabalhar/ o velho peão estradeiro com seu filho
foi morar/ O rapaz era casado e a mulher deu de implicar/ ou você manda o veio
embora se não quiser que eu vá/ e o rapaz, o coração duro com o veinho foi
falar: Para o senhor se mudar meu pai eu vim lhe pedir/ hoje aqui da minha casa
o senhor tem que sair/ leva este couro de boi, que eu acabei de curtir/ pra lhe
servir de coberta, adonde o senhor dormir/ O pobre velho calado, pegou o couro
e saiu/ seu neto de oito anos que aquela cena assistiu/ correu atrás do avô,
seu paletó sacudiu/ metade daquele couro, chorando ele pediu/ O velhinho comovido
pra não ver o neto chorando/ partiu o couro no meio e pro netinho foi dando/ O
menino chegou em casa, seu pai foi lhe perguntando/ pra que você quer esse
couro que seu avô ia levando?/ Disse o menino ao pai: um dia vou me casar/ o
senhor vai ficar veio e comigo vem morar/ pode ser que aconteça de nós não se
combinar/ esta metade do couro, vou dar pro senhor levar”.
E depois “A Enxada e a Caneta”, de Teddy
Vieira e Capitão Balduíno, também declamada no início dos versos:
“Certa vez uma caneta foi passear lá no
sertão/ Encontrou-se com uma enxada, fazendo uma plantação/ A enxada muito humilde,
foi lhe fazer saudação/ Mas a caneta soberba não quis pegar na sua mão/ E ainda
por desaforo lhe passou uma repreensão: Disse a caneta pra enxada não vem perto
de mim, não/ Você está suja de terra, de terra suja do chão/ Sabe com quem está
falando, veja sua posição/ E não se esqueça a distância da nossa separação/ Eu
sou a caneta dourada que escreve nos tabelião/ Eu escrevo pros governos a lei
da constituição/ Escrevi em papel de linho, pros ricaços e pros barão/ Só ando
na mão dos mestres, dos homens de posição/ A enxada respondeu: de fato eu vivo
no chão/ Pra poder dar o que comer e vestir o seu patrão/ Eu vim no mundo
primeiro, quase no tempo de Adão/ Se não fosse o meu sustento ninguém tinha
instrução/ Vai-te caneta orgulhosa, vergonha da geração/ A tua alta nobreza não
passa de pretensão/ Você diz que escreve tudo, tem uma coisa que não/ É a
palavra bonita que se chama educação!”.
Depois de uma talagada como brinde, o
cantador falou que sabia serem as letras dessas músicas também fruto de gente
até formada, de anel no dedo e tudo mais. Portanto, nem sempre o vivente da
situação era o criador da canção. Ao que o outro acrescentou não ter qualquer
importância ser assim, pois o mais importante mesmo era sentir o cheiro da
terra e do sertanejo em cada verso.
E dedilhou, cantando pra lua: “De que me
adianta viver na cidade/ Se a felicidade não me acompanhar/ Adeus paulistinha
do meu coração/ Lá pro meu sertão eu quero voltar...”
Poeta
e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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