Rangel Alves da
Costa*
As
profissões atuais modernizaram-se quase todas. Dificilmente se encontra um
artífice trabalhando como antigamente. Ademais, poucos são os ofícios que
permanecem pela força, dedicação e amor de mãos verdadeiramente artesãs. Para
se ter uma ideia, coisa rara é poder dispor de alguém que ainda produza um
gibão de couro na medida, sob encomenda.
Nos meus
tempos idos interioranos encontrava muitos desses artífices no seu bater,
pregar e flamejar de todo dia. Hoje são apenas recordações. Até mesmo nas
distâncias sertanejas aonde a modernidade chega mais lentamente e as
tecnologias não causam impactos tão instantâneos, os velhos ofícios ou não
existem mais ou se escondem por trás de portas pouco visitadas.
Tudo era
praticamente na base da força, da destreza manual, da lâmina afiada, do
braseiro crepitando, da navalha de mil cortes, da agulha grossa e recurvada, do
esquadro de madeira lisa, da mesa de umburana de cheiro, do couro urdido nas
águas do riachinho e curtido pelo sol de muitos dias. Muitas vezes sem saber
ler nem escrever, mas não havia qualquer citadino de anel no dedo que chegasse
com a petulância de querer ensinar. Verdadeira afronta pretender ensinar ao
doutor do afazer manual.
E um monte
de coisas simples surgindo como obras de arte. A madeira bruta, o tronco
parrudo, o ferro retorcido, a courama crua, o cipó do mato, os novelos de
linha, bilros, almofadas, bastidores, dedais, resina bruta, borracha de pneu,
fivelas, ferro a carvão, fole fumegante; enfim, uma série de materiais
recolhidos no meio ou na natureza, ou de fácil aquisição, que logo se
transformariam em arte matuta de encher os olhos. Tudo acrescido de paciência,
muita paciência.
O velho
coureiro transformava o couro cru e malcheiroso em arreios, embornais, selas,
gibões, chapéus, botas, rolós, chicotes, pederneiras, alforjes e tudo o mais
que o sertanejo precisasse na sua lide. Do colo das velhas senhoras, geralmente
sentadas nas calçadas ao entardecer, se estendiam as almofadas cheias de bilros
e lentamente, na habilidade incomum dos dedos, iam surgindo rendas e trançados
maravilhosos. Depois de juntadas, as peças formavam lindas colchas e toalhas
para as mesas solenes e burguesas.
O velho
ferreiro se entregava ao calor escaldante para entregar no tempo combinado a
foice afiada ou o enxadeco com lâmina de punhal. Colocava o ferro bruto na
fornalha e em seguida, com o metal abrasado, se punha a dar marretadas para dar
feição e contorno ao que pretendia produzir. Depois molhado na água, o ferro
soltava uma fumaça que impregnava tudo e enchia os pulmões do arteiro de
fuligens mortais. Mas no passo seguinte e o mesmo processo sendo repetido, até
a lâmina tomar prumo.
Não menos
sacrificante, porém muito mais gratificante, era o ofício das senhorinhas
parteiras sertões adentro. Mulheres de conhecimentos adquiridos de gerações a
gerações, de mãos rudes das lides da vida, porém hábeis e cuidadosas para
trazer ao mundo os pequeninos sertanejos. No meio da noite ou em qualquer hora
do dia, bastava a mulher reclamar a primeira dor e imediatamente os serviços de
obstetrícia matuta eram requisitados. Geralmente apenas com panos, tesouras,
orações e gestos meticulosos de máxima sabedoria, e logo a criança rebentava em
choro para alegria de todos.
E não
menos reconhecida era a arte dos velhos santeiros e suas imagens sacras
talhadas em madeira; as velhas mãos lambuzadas de barro liguento para moldar
panelas, potes, moringas e tachos, todo um repertório em argila e que incluía
personagens do cotidiano nordestino à moda do Mestre Vitalino. E eis as
fateiras limpando tripas, buchos e todo que fizesse parte dos intestinos dos
animais para a buchada. Em tudo a arte própria de um povo, fruto de raízes
antigas, mas que praticamente esquecidas nos desvãos da modernidade.
Atualmente
ainda é possível encontrar os livretos de cordel pendurados em barbantes pelas
feiras interioranas, mas não na profusão de antigamente. Houve um tempo em que
os dias de feiras eram verdadeiras festas com os cordelistas lendo suas
histórias mirabolantes para um público receptivo e entusiasmado. E logo adiante
os repentistas levavam no mote da viola e no verso rimado toda uma saga
interiorana.
Num canto
da feira o antigo retratista armava seu tripé fotográfico com paisagem ao fundo.
Retrato para documento tinha de ser com aquela frente de paletó com gravata.
Seriedade no três por quatro em preto e branco e sorriso permitido nas outras
fotografias. E tudo muito simples, ao menos para quem observava. O retratista
colocava sua mão por dentro daquela caixa com pano ao fundo e num instante a
posteridade já estava garantida.
Dificilmente
alguém não voltava da feira trazendo um frasco de medicamento ali oferecido em
alarde. Os vendedores de remédios para curar quase tudo se punham de microfone
amarrado na altura da boca e saíam oferecendo seus milagres caseiros. Pomadas,
xaropes, misturas, fortificantes, tudo enfim, era ali oferecido para curar
espinhela caída, bronquite e rouquidão, fraqueza física e sexual, falta de
apetite e principalmente para revigorar o fluxo sanguineo. Famosa era a pomada
de peixe, verdadeiro milagre curativo.
Tudo isso
foi de um tempo ido. Verdade é que muito ainda se encontra por aí,
principalmente nas feiras interioranas, mas não com aquela vivacidade de
antigamente. Como se foram os ofícios e as artes singelas, também os autênticos
pregoeiros das curas para todos os males da vida. E infelizmente, pois tudo
isso fazia um incomparável efeito espiritual.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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