Rangel Alves da Costa*
Imagine o seguinte cenário: Mata fechada,
tomada de catingueiras, aroeiras, angicos, quipás e tantas outras árvores de
galhagens pontudas, ameaçadoras e traiçoeiras. Mais rente ao chão, urtigas e
cansanções, cabeças-de-frade, xiquexiques, tocos pontiagudos e perfurantes,
cactos agulhados, carrapichos, tufos com seus habitantes venenosos e
indesejáveis. Pontas de pedras miúdas, lajedos cortantes, espinhos abertos em
flor, cipós se entrelaçando, grotas e armadilhas. Tudo na natureza cerrada ou
por veredas de difícil caminhada. E o calor insuportável se em tempos de
estiagem, ou lamaçais escorregadios se em épocas de trovoadas. Além disso, os
caminhos perigosos e traiçoeiros, as curvas perigosas, os olhos que pareciam
escondidos por dentro da mataria. As incertezas em cada passo, o aperreio em
cada instante da vida, seja debaixo do sol, seja debaixo da lua.
Imagine a seguinte cena: Um monte de gente
caminhando apressadamente, cansada, esbaforida, tendo que seguir sempre adiante
custe o que custar. Pessoas famintas, sedentas, sem tempo de parar para buscar
qualquer alimento no embornal ou procurar um fio d’água perdido na mata. Homens
correndo, homens fugindo, se entrincheirando, avançando, recuando, atacando, se
movendo de canto a outro sem parar. Chovesse ou fizesse sol, todos cobertos com
roupas pesadas, com armas, cartucheiras e embornais descendo dos ombros,
cruzando os peitos, alojadas nas perneiras. Sempre em alerta, atentos ao menor barulho
surgido na caatinga, muitas vezes tinham os olhares voltados apenas para frente
e para os lados, para os tufos ao redor, sem ter tempo de dar a menor importância
ao que seria encontrado ou pisado pelas grossas alpercatas de couro cru.
Agora imagine a seguinte situação: Na pressa
do passo, no avanço rotineiro e até descuidado, ou mesmo já mais lentamente e
com esmerado cuidado pelos barulhos suspeitos ouvidos, pela falsa imitação de
canto passarinheiro escutado instantes atrás, de repente e alguém lá na frente,
aquele que está com a função de abrir caminho, para e levanta o braço direito. Ou
apenas parando para gesticular, fazer sinais, apontar direções, ordenar que
parte do grupo avance atacando por um lado, enquanto outro deve adentrar na
mata pelo outro lado, de modo que o inimigo se veja cercado e sem saída. Ou
ainda soltando um grito de comando para recuar, avançar, atacar, se dissipar
ou, já sentindo a presença do inimigo e o pipocar de suas armas, querendo dizer
que mais uma refrega de vida ou de morte está para acontecer. E num segundo os
tiros partindo de todas as direções, gente se entrincheirando rente ao chão,
alguns procurando arvoredos ou pedreiras como proteção, outros correndo quase
agachados, mas sempre com armas empunhadas. E atirando, contra-atacando, tendo
o corpo lanhado da mata impiedosa, muitas vezes com o corpo sangrando pela bala
desnorteada que não pôde evitar. Gritos, berros, sons terríveis das armas
cuspindo fogo, gemidos abafados, últimos suspiros. A morte. Mas também a continuidade
da vida.
E certamente as cenas seguintes: Após colocar
o inimigo em recuada, afligi-lo de grandes perdas ou colocá-lo em fuga
desembestada por cima de troncos e catingueiras, ter de se refazer no que
restou, lamentar os mortos, tentar salvar os feridos, nada parece ainda seguro.
Não raro que sequer há tempo para olhar pra trás, para sentir as perdas, para
arrastar ou levar nos ombros aqueles que clamam socorro. Sabem que mais adiante
a mesma luta será travada, as vidas estarão novamente entregues ao comando do
destino Tantas vezes não há vencido nem vencedor, apenas opostos que lutam
ferozmente e são vitimados de lado a lado. Cada vitória é comemorada na própria
vida que milagrosamente foi preservada, mas não se sabe até quando. Dependendo
das circunstâncias, os mortos são abandonados ali mesmo nas veredas da luta,
deixados à sorte dos animais carnicentos e das cruzes invisíveis. E um rastro
de sangue vai ficando para trás, demarcando a terra sertaneja nas costumeiras
vinditas entre cangaceiros e volantes.
Parece filme, relato de uma saga travada nos
carrascais nordestinos, um épico medonho que teve seu auge nos tempos de
Lampião e seu bando, e com a polícia volante como personagem secundária, mas
não menos importante. A película da história não afasta a ideia de que em
muitas ocasiões e contextos tenha sido realmente assim. Ora, o cenário não
poderia ser outro, as cenas também, e os personagens aqueles homens escolhidos
pelo destino para combater as ilusões de um tempo injusto.
Filme longo, penoso, trágico, sangrento,
abominável para uns, plenamente justificado para outros, mas sempre memorável
em todos os sentidos. Mesmo que se negue o valor do cangaço, a coragem daqueles
homens do sol e a sua luta infinda, não se pode deixar de reconhecer a
grandiosidade do fato histórico. Eis que o cangaço representou o despertar do
homem comum, totalmente renegado pelo poder vigente, e oprimido na sua própria
terra, para a possibilidade de reconhecimento e valorização através da luta.
Luta inglória, sim. Mas o cangaço não buscava
vitória. Lampião não buscava troféu. Talvez apenas mostrar que o sertanejo,
igualmente ao seu sol, também se levanta.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
2 comentários:
Pois bem Dr. Rangel: Tudo que você escreve é importante. Contudo, textos que envolve o cangaço, para mim a contribuição é bem maior, logo que estes últimos tempos quase que só leio e escrevo CANGAÇO, senão meu livro vai passar mais 4 anos para sua conclusão.
Parabéns,
Antonio Oliveira - Serrinha
O sertanejo é a alma do Brasil. Encontro mais valor no homem do sertao que apesar das dificuldades luta para sobreviver, sem se entregar aos vícios e promiscuidades ao contrario de outros inumeros brasileiros.
O sertanejo, isolado, guerreiro astuto, fincou a brasilidade em teu sangue. Nas suas veias corre a beleza da miscigenaçao, no seu corpo a força que o sustenta de vitoria e quedas, mas sempre continuando firme à sobrevivencia. Os cangaceiros, tal como os indios sao nossos gladiadores, nossos bravos guerreiros medievais. Inspiram o coraçao de qualquer brasileiro com sua coragem e determinaçao.
Se um dia em minha pátria, no meu Brasil o povo resolver mudar nosso subjogo aos poderosos e corruptos, certamente buscaremos nos cangaceiros exemplos de fé e coragem, o que certamente nos fará vencer. Mas enquanto negarmos nossos herois e buscarmos os dos outros, continuaremos na letargia e nos autosuicidando.
Deus-Patria-Familia
Anauê!
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