Rangel Alves da Costa*
Na época do cangaço, principalmente com a
fama alcançada pelo bando de Lampião por quase toda a região nordestina e o
consequente aumento da perseguição por parte das forças policiais, uma vítima
quase que silenciosa talvez tenha padecido muito mais que qualquer outro
inimigo: o sertão.
Verdade é que na guerra entre mocinhos e
bandidos, entre soldados e bandoleiros, volantes e cangaceiros, foi o próprio
sertão que pagou o preço mais alto pelas vinditas de sangue dos confrontantes.
E quando se fala em sertão logo se avista o homem, o humilde e o empobrecido
sertanejo vivendo nas brenhas distantes, mas também todo aquele habitante da
região nordestina que estivesse no caminho da caça e do caçador.
Naquela época não se pode visualizar o sertão
senão como uma casa que constantemente se vê rodeada por inimigos se
confrontando. Quisesse ou não, o sertanejo também era vitimado pela violência
dos outros. Mas não porque os inimigos guerreassem nas proximidades de suas
moradias ou dentro das cidades, e sim pelo próprio terror que foi sendo causado
pela presença de soldados e cangaceiros nas proximidades dos lugarejos e
adentrando nas povoações.
Zé Baiano, o carrasco ferrador |
Os estudiosos e pesquisadores são unânimes em
admitir a violência exacerbada naqueles tempos cangaceiros, e praticada não só
pelos revoltosos das caatingas como também pelos seus perseguidores. Chega-se a
admitir que a violência fosse maior em face do próprio sertanejo que contra o
inimigo. O homem da terra, aquele que nada tinha a ver com a briga dos outros,
acabava sendo a vítima maior. Ora, tem-se como normal que as partes
confrontantes utilizem de todas as forças e meios para saírem vencedoras, mas
jamais pode ser visto como normal que nos caminhos da guerra inocentes sejam
vitimados pela arrogância, brutalidade e covardia daqueles que adentravam nas
suas povoações.
Reconhece-se que a guerra entre cangaceiros e
macacos ia muito além das caatingas, grotões e descampados. Os confrontos, as
batalhas em si, geralmente ocorriam nos afastados das povoações, pois poucas
vezes a polícia pôde reprimir os ataques cangaceiros já dentro das cidades e
arraiais. Mas como dito, nos percursos tanto do bando como da volante havia
sempre um lugarejo sertanejo que acabava recebendo a inesperada e violenta
visita. Porém nem sempre aconteceu assim.
Quando Lampião resolvia fazer uma visita a um
conhecido a situação era bastante diferente daquela de simplesmente irromper
destemperadamente pelas povoações. Com destino certo, mesmo que o amigo não o
estivesse esperando, logo ordenava respeito e comedimento aos seus cabras. Não
admitiria violência ou desfeita durante sua estadia, principalmente porque
todos acolhidos para cuidar de assuntos importantes e com certeza de lauto
regabofe à base de carne de bode fresca. Mas bastava a simples presença do
bando para que a população ficasse em polvorosa.
E havia motivos de sobra para que realmente
ficasse temerosa, num verdadeiro deus nos acuda. O histórico das passagens
cangaceiras geralmente apontava para um misto desenfreado de terror e
agressividade, numa violência desmedida para quem não era inimigo. Com
consentimento ou não de Lampião, a verdade é que os seus cabras de vez em
quando praticavam verdadeiras barbaridades. Basta lembrar o episódio de Zé
Baiano ferrando o rosto de três mulheres em Canindé do São Francisco.
Os livros relatam casos de verdadeiras
atrocidades praticadas pelos cangaceiros. Citam sertanejo sendo forçado a ficar
de quatro enquanto cangaceiro subia nas costas para retalhá-lo com esporas. E
tendo punhalada no pescoço como desfecho. Descrevem a tortura de famílias
inteiras diante da falta da dinheirama exigida. Tantas e tantas vezes os
humildes matutos tiveram suas meninas violentadas, foram forçados a matar
criações e preparar comida para os famintos, tiveram de se submeter às mais
absurdas exigências dos ensandecidos das caatingas. E quando os bandoleiros
agiam sob efeito de cachaça então as monstruosidades redobravam. Por isso mesmo
que quando se ouvia falar que os cangaceiros se aproximavam, famílias inteiras
abandonavam seus lares e corriam para os escondidos da mata. As povoações
ficavam abandonadas e ao bel-prazer da senha bandoleira.
Mas a volante era ainda mais perigosa e
violenta, e disto não há que se duvidar. Ora, os comandos policiais enviados
para combater os cangaceiros não eram formados por mercenários ou renegados, mas
sim por pessoas servindo a corporações militares e agindo em nome dos
governantes, com comando de patente e tudo mais. Portanto, com plena
consciência de quais bandidos deveriam perseguir. E o homem da terra não era
bandido. Mas não, na sua desenfreada busca e na revolta pelos contínuos
fracassos, jogavam todas as suas iras contra o humilde caboclo.
Maria Marques, ferrada por Zé Baiano |
A ação violenta da volante não escolhia
condição econômica, pois o de maior condição financeira sofria igualmente ao
mais empobrecido. Os meios de violência é que se modificavam. As extorsões e
ameaças eram constantes contra os mais ricos, e logo se tornavam em torturas e
mortes acaso não entregassem o exigido. O humilde sertanejo, que só tinha a
vida e a família, era tido como uma verdadeira inutilidade ou espinho
atrapalhando a caçada. E sabendo que o bando era formado por sertanejos, então
se danavam a desonrar, a ferir, a torturar, a matar. E tudo praticado com
cínica perversidade, entre gargalhadas e festins diabólicos.
Triste daquele matuto que fosse acusado de
ser coiteiro, informante e servidor do bando. Este era amarrado, torturado,
lanhado no corpo inteiro, pinicado até não mais suportar. Sofria absurdamente,
mas continuava em silêncio, não satisfazendo os gostos da macacada. Preferia
morrer a trair a si mesmo ou a Lampião, a macular sua honra sertaneja.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
2 comentários:
Caro Escritor Rangel - o filho do grande Político e Escritor Alcino Alves Costa: O meu bom dia.
Tenho excelentes fontes de informações sobre a História do Cangaço, em especial o companheiro José Mendes com seu blogdomendesemendes, além dos E-mails que ele me envia dirimindo as minhas dúvidas. Contudo, você, criado como o foi, naquele sertão de Poço Redondo, entre Piranhas e Canidé e, ainda carregando consigo o legado do saudoso ALCINO, não poderia me omitir em agradecer por cada texto que você escreve e publica acerca do cangaço. Cada texto que você posta sobre a saga do cangaço, assim como outros pesquisadores que também o fazem, é uma enorme contribuição para mim que há quatro anos estou pesquisando e escrevendo um trabalho sobre o referido assunto.
Portanto, só posso dizer: Obrigado companheiro.
Antonio Oliveira - Serrinha desta nossa Bahia.
Aqui, a história era do contrabando, penso que será quase a mesma coisa.
Histórias terríveis de crimes mas também de muita valentia.
Gostei de ler este texto ,muito esclarecedor e correcto.
Um abraço
Graç
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