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sexta-feira, 8 de agosto de 2014

SOBRE ESCRITORES, GAVETAS E TRAÇAS


Rangel Alves da Costa*


Considero os personagens de romances, contos e pequenas histórias como seres que possuem vida própria. Nascem com características humanas próprias, ganham personalidade e destino, e percorrem sua trajetória até o ponto final. E neste momento, dependendo da força criativa do autor, ganham a imortalidade.
Contudo, não só pela força criativa do autor, mas também, e talvez principalmente, pela oportunidade que ele tem de tirar seus personagens da gaveta e colocá-los na liberdade dos livros publicados. Ora, os personagens precisam viver, sobreviver, ser vistos, reconhecidos, amados ou odiados, e até copiados, para alcançar a imortalidade.
Comungo da existência dessa imortalidade mesmo naqueles personagens que não têm a oportunidade de ganhar a liberdade através da publicação de seu mundo. Mesmo relegados ao esquecimento, ao abafado mundo das gavetas e baús, sufocados dentro das páginas tantas vezes reescritas, não deixam de ter características e personalidades próprias, de serem tão reais naquele microcosmo ficcional.
É lamentável que ainda vivamos em um país onde escritores – e excelentes contistas, prosistas, romancistas e poetas –, na maioria das vezes não possuem qualquer oportunidade de publicar seus livros, de dar liberdade aos seus personagens, cujas vidas passam a se resumir aos escuros mofados das gavetas. São escritores, mas ao mesmo tempo carrascos e algozes de seus próprios personagens.
Ora, ao criar seus personagens, dando-lhes vida e destino, logo imaginam agindo perante a imaginação do leitor. Sem tal exteriorização, sem que as criaturas deixem de viver apenas nos originais, tudo se torna num difícil e terrível dilema para aqueles que cortam a noite e adentram a madrugada dando o sopro de vida e da ação a inúmeros seres. E fazê-los nascer sem ter a mínima certeza que algum dia suas criaturas encontrarão a liberdade perante os olhos dos leitores.
Aquele que escreve e tem condições de arcar com os custos altíssimos da publicação ou lançamento de um livro, ou, por via sempre mais desejável, consegue patrocínio suficiente para editar sua obra, certamente proporcionará a liberdade merecida aos seus personagens. Tirando-os das gavetas, dos baús ou de onde permaneciam sufocados, coloca-os perante a imortalidade. E isto porque o escrito e publicado possui a perenidade do próprio valor da obra. Daí ser possível a imortalidade.
Como já afirmado, diferentemente ocorre com aquele que, mesmo produzindo uma obra grandiosa e de garantida acolhida se publicada, se vê totalmente impossibilitado de levar ao público sua arte literária, sua criatividade para o desenvolvendo de enredos e tramas, sua força para dar contextualização àquilo que numa noite de insônia começou a gerar. Noite de insônia ou no ofício do dia.
Então, além do problema pessoal gerado pelo sentimento de falta de apoio, e por consequência o impedimento de que seja lido e reconhecido o valor de sua obra e seu próprio valor enquanto criador, então começa a surgir um problema que reputo ainda maior. E este diz respeito à destinação dada àquilo que as circunstâncias não permitem que seja aproveitado.
As gavetas acolhem silenciosamente as vidas que não alcançaram a devida libertação. As traças e cupins festejam e começam a devorar uma a uma aquelas vidas e seus destinos. As tramas, enredos e contextos se distorcem de dor até perderem a razão de permanências, as motivações de suas existências. E os autores, verdadeiros deuses da criação, forçados que são a aceitar as negações impingidas, enterram seus mortos dentro da própria alma.
Lamentável que seja assim. E igualmente triste saber que neste momento inúmeros personagens sopram seus últimos instantes de vida, ameaçados que estão pelas traças que povoam a escuridão dos esquecidos.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com  

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