Rangel Alves da Costa*
O meu avô gostava de conversa de pé de pau,
debaixo da imensa tamarineira. Era autêntico sertanejo, e sertanejo possui
guarida garantida no proseado do entardecer, ao redor de iguais, de gente com causos
na ponta da língua de não acabar mais. E um proseado onde surgia de tudo, desde
a seca que já despontava às relembranças dos tempos cangaceiros na região.
Ele mesmo amigo de Lampião, já tendo acolhido
o Capitão na sua casa na povoação sergipana de Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo,
ocasião em que o inusitado fez sentar à mesma mesa, para o mesmo regabofe, a
cruz e a espada, o pecado e a salvação. Os dois ilustres visitantes na mesma
casa, já tendo chegado Padre Arthur e estando recolhido para uma soneca, quando
o Capitão apareceu não havia nada a fazer, a não ser acomodá-lo e anunciar a
presença do vigário. Ao toque na porta do quero, o padre levantou assustado e
perguntou quem tinha a petulância de incomodar a igreja durante seu repouso. Ao
ouvir o nome de Lampião quis esconjurar todo mundo, esbravejou, prometeu dar o
que o cangaceiro merecia. Mas acabou abrindo a porta sem arma em punho e em paz
dividiu a mesa com o pecador. E comeram como dois esfomeados, indo do capão
gordo à buchada de bode mais gorda ainda. Por isso que o meu avô não gostava
muito de tecer considerações acerca do cangaço, como se sentindo entristecido e
saudoso.
Por isso mesmo que tive de recorrer a um
amigo seu de pé de pau para conhecer melhor a história das carreiras.
Adiante-se que carreiras eram as fugidas apressadas da população matuta assim
que tomava conhecimento que o bando cangaceiro se aproximava, já estando pelas
matarias ao redor da povoação. Não todos, mas a maioria, temerosa demais,
achava melhor não esperar tempo ruim e se danava a correr em busca de refúgio.
Desembestava num desespero tão grande que sequer fechavam as portas. Comida
esturricava na panela, gente deixava a caneca d’água pela metade, pés descalços
iam encontrar os espinhos.
E Zé do Aió assim me contou, e acreditei, por
isso mesmo que repasso segundo a pronúncia que ouvi. E sabendo que sou neto de
China do Poço, o famoso Teotônio Alves China, amigo de todos os amigos sem
distinguir a hóstia ou a bala, não se demorou a debulhar suas memórias.
“Meu fio, aquerdite que só mermo Deus pra
sarvá nóis daquela aflição. Eu mermo num tinha medo não, inté dava vontade de
correr, mai ficava, inté debaixo da cama já me escondi. E eles chegaro e sairo
sem fazer nada que fosse do outro mundo. O pobrema todo, e por isso mermo o
medo do povo, era aquele montão de gente tudo pareceno uns bicho saino da mata
e tomano conta do lugar. Tudo armado inté os dente, de cara feia, de modo que
num tinha quem não tivesse medo. E os que avistava era pruque oiava pelas
fresta, pelos escondido, pelos buraco na parede. Ninguém era besta de abrir a
porta e botar um pé fora de casa. Eles podia passar e num fazer nada, mai tomem
ninguém sabe se...”.
“Ninguém sabe se a mardade tava naquele dia
em cada um. Por isso mermo que a maioria dos daqui se arribava no meio do mundo
que chega a perna batia na bunda. Meu fio, o trupé era tão feio que inté véio
tinha de arranjar força nas perna e correr. Era muié em correria cum menino
novo arranchado nos quarto, menino e mocinha correno feito bicho da mata, home
perdeno a valentia na hora, muita gente toda mijada e cagada, sei disso. Tinha
gente que dismaiava só em saber da chegada do Capitão e era deixada pra trais.
Tinha gente que corria tanto, tão desembestado que tava, que adespois num sabia
vortá, ficava perdido na mataria fechada. E o povo só vortava quano os que
tinha ficado se embrenhava pra avisar que a cangaceirama já tinha arribado. Mai
nem todo mundo fugia..”.
“Eu mermo, que num sou besta, corria era pra
casa de China, seu avô. Além de ficar portegido, adespois ainda comia da sobra
muita da comida. E era muita comida, e tinha de ser assim. Num era só Lampião,
mai o bando intero a comer das panelada feita por Dona Marieta e suas amiga.
Mai ao meno aqui os cangacero nunca reviraro tudo não, nem sairo atirano no que
encrontasse. Da urtima veiz que avistei eles por aqui, e foi quano armoçou mai
o vigário na casa de China, adespois foi todo mundo pra missa. Pade Arthur
aceitou os home na igreja e só disse que as arma tinha de ficar do lado de
fora. E assim acunteceu. Eu mermo vi Lampião ajoieiado, rezano, cheio de fé.
Coisas difici de aquerditá, mai eu vi. E com esse oio que a terra há de comer”.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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