Rangel Alves da Costa*
Cordiais saudações. Assim estava escrito,
logo abaixo do nome do lugar e da data, na cartinha que não fora enviada pelo
seu subscritor. Porém, não se sabe o real motivo, a missiva acabou sendo
colocada em garrafa de vidro e jogada nas águas do Rio Sergipe, e agora
encontrada já nas suas margens distantes, após as leves correntezas endereçarem
até os beirais molhados. Seria leitura de caranguejos e caramujos de água doce
se não despertasse a atenção de outro vivente das margens. Quando o sol bateu,
o brilho da garrafa chamou a atenção de um velho ribeirinho, um pescador
conhecido por Serigy.
Serigy agora era pescador, mas no passado já
havia sido um renomado cacique de sua tribo tupinambá que habitava toda aquela
região. Desde muito que o seu povo havia sido dizimado, completamente destruído
pelos brancos invasores. Lutou o quanto pôde, viu cada guerreiro cair sangrando
pelos areais, viu índio novo e índio velho ser varado pelas baionetas e feridos
pelo fogo voraz, viu toda sua tribo morrer sem piedade. E quando o cano da
morte mirou o seu peito nu, rapidamente correu em busca do chá milagroso. Já
estava caído como morto quando os botins forasteiros pisotearam seu peito para
a certificação de que não havia mais sopro de vida. Um dia após despertou do
sono profundo e se ergueu para enterrar seus mortos. Depois chorou sete dias e
sete noites seguidas. E daí em diante se fez imortal com a mesma idade que
possuía, mas agora como um velho pescador.
Foram seus olhos que avistaram a garrafa e
suas mãos que a ergueram. Não se surpreendendo com mais nada deste mundo - nem
do outro -, colocou o vidro diante de sua visão por alguns instantes e então
resolveu abri-la para saber do que se tratava aquele papel enrolado em cone lá
dentro. Puxou com cuidado e mais cuidadosamente ainda desenrolou aquela
estranheza em suas mãos. Não sabia ler e por isso mesmo avistou somente uma
junção apertada de qualquer coisa, linha após linha, nos dois lados da folha.
Aquilo não lhe interessava, pensou. Tomou posse da garrafa e jogou ao vento o
encontrado lá dentro. E as palavras foram se espalhando.
“Cordiais saudações. Depois de tanto
tempo acendi o pavio do candeeiro para
rabiscar as velhas palavras que se seguem. Velhas porque nada de novo surge que
mereça consideração mais aprofundada. Prefiro calar e reacender as nostalgias
que abertamente conviver com realidades brutais e abomináveis. Por isso busco
conforto no baú da memória e na recordação das coisas simples e suportáveis
convividas no dia a dia. Quem dera um pouco daquele retrato antigo, tudo
emoldurado no respeito, na palavra honrada, nas boas relações pessoais e
familiares. Hoje dizem que são coisas envelhecidas, em desuso, mas não vejo com
tempo de validade aquilo que deveria ser a feição de cada povo e a qualquer
tempo. E há de recordar o que dizia o velho padre em sermão: Preservem a honra
que os guarnecem, pois amanhã será o tempo dos desonrados, e depois de amanhã
será o tempo dos desonestos”.
“Mande-me notícias daquelas frutas que tanto
prazer adoçava sua gulodice. Não se vê araçá nem quixaba, melão coalhada nem
tantas outras que chegavam em cestos. Quem sabe ainda pode encontrar um queijo
verdadeiro de fundo de casa de fazenda, também a manteiga batida no tacho
grande. Hoje tudo misturado, tudo feito para enganar. Foi-se o tempo de
saborear o cuscuz de milho ralado. Ouvi dizer que até galinha de capoeira está
difícil encontrar. Mas também não há mais quintais, aqueles grandes quintais
que quase divisavam com as matas ao redor. Tais fundos eram as mercearias para
muitas famílias. Ali a galinha e os ovos de capoeira, o porco gordo, o guiné, o
capão roliço, o bicho de cria. E também a plantação de tomate, de pimentão, do
maxixe. Pimenteira de não acabar mais, sem falar nas árvores frutíferas que
derramavam cajus, goiabas, sapotis e magas, dentre tantas outras. Não havia
quintal que não tivesse o remédio certo para a cura de todos os males. Em pouco
instante e já se dispunha do mastruço, da erva cidreira, do manjericão, do
boldo, numa verdadeira farmácia. E há de recordar o que o dizia o doido sentado
debaixo do sol na pracinha: Um dia ainda vão me pedir um pouquinho de sopa de
pedra”.
“Tempos, tempos, como diria o calendário
cansado de repassar. Tempo que passa e tudo transforma. As cidades cresceram e
se transformaram, mas nem sempre com a singeleza de outras eras. Não poderia
ser diferente, pois cada casa não é mais moradia, mas um imóvel que se
valoriza. As ruas não são mais dos caminhantes, mas dos automóveis. As calçadas
não são mais das cadeiras ao entardecer e anoitecer, mas de estranhos que
passam apressados e da violência que vem bater à porta ou pular o muro. As
vizinhanças parecem pessoas desconhecidas, os moradores da mesma rua pouco se
encontram ou dialogam. As janelas e portas vivem fechadas, as crianças não
estão mais seguras brincando nos arredores, quase ninguém passa dando um bom dia
ou boa tarde. E há de recordar o que dizia o antigo leiteiro: Não reclame do
preço do leite gordo, pois vão pagar muito caro por água branca”.
“Eis a vida, eis a vida. Não sei se por aí
continua existindo, mas por aqui não se sente mais o cheiro bom, oloroso e
saboroso, do café torrado fervendo no fogo de lenha. Tenho um conhecido que foi
chamado de louco porque resolveu fazer serenata debaixo da janela de uma
donzela. Revoltado, disse que não só cantaria à sua musa debaixo do luar como
continuaria escrevendo versos de amor para colocar no umbral, sempre
acompanhados de flor. E morreu triste pela incompreensão de tantos. E
entristecido também fico eu diante desse mundo novo que nasceu órfão de
sensibilidade e cresce na desumanidade. Agora preciso me despedir. Até breve”.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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