Rangel Alves da Costa*
O verdadeiro sertanejo sequer gosta de se
afastar de sua casa, de seus arredores. A vida na cidade lhe parece estranha,
insuportável, aterradora. Por isso não vê a hora de terminar suas compras,
enganar o aió e embornal e pegar a estrada. Vereda espinhenta que o levará ao
paraíso.
Dinheiro pouco, contado, comprou quase nada.
Um pedaço de fumo, bala doce pra meninada, um corte de chita pra mulher, uma
garrafa de pinga e as encomendas da cozinha sertaneja. Pouca coisa também,
apenas um tico disso e daquilo. Arroz, farinha, açúcar, café, sabão em pedra,
sal, colorau e tempero. E também um quilo de carne com osso, um quilo de bucho
e outro de tripa.
Sabe que é pouco pra tanta boca, mas também
sabe que fome de entristecer ninguém passa. Verdade que não há mais caça como
antigamente, sequer o preá e a nambu são avistados pelas matarias. O jeito que
tem é de vez em quando puxar no cangote de uma galinha e botar na panela.
Galinha sempre gorda, criada ciscando à solta, é garantia de comida na mesa por
dois dias.
A secura do lugar onde mora não permite a
criação de porco, pois o bicho não ia engordar sem resto de comida, água pra se
lambuzar e lama pra focinhar, mas possui quatro ou cinco cabeças de bode. Matar
pra consumo próprio de jeito nenhum. A esperança é que ganhem uns quilinhos a
mais para serem vendidos. Mas dinheiro pouco entra no bolso e sai pela mão.
Não vive contente com a pobreza, logicamente
que não. Mas olha ao redor e avista situação muito pior, coisa de cortar
coração. Nunca há fartura no prato, mas também não amarga o sofrimento de ter
filho chorando de fome. E choro assim é ouvido de palmo a palmo, de lado a
outro no seu sertão.
Pelas vizinhanças barriga cheia só do barro
escavado da tapera, panelas e pratos vazios e olhares chorosos e entristecidos.
Menino correndo atrás de calango para atirar na brasa e saborear, pai de
família em tempo de endoidar. Sabugo de mandacaru novo até que é não é ruim,
mas tudo seco, esturricado de vez.
Tudo isso acontecendo ao redor. E bem que
podia ser com sua família. Dá uma vontade danada de chorar, e chora mesmo. Só
que transfere as lágrimas e o sofrimento para o velho berrante. É assim que ao
entardecer o berrante ecoa por aquelas paragens, chorando pelos seus irmãos de
chão.
Tudo faz para mostrar força diante de tudo.
Mas sofre na vida, sofre quando avista a terra seca e sem nenhum pé de pau
verdejante, sofre quando a nuvem de chuva vai se dissipando ainda ao longe. O
mesmo sofrimento de todos ao redor, a mesma dor suportada por todos.
Mas não arreda pé dali de jeito nenhum. Ali
nasceu e ali há de morrer. Ali sua existência, sua razão de lutar pela vida,
sua esperança sempre renovada na fé. A mulher se ajoelha perante o oratório,
ele retira o chapéu do lado de fora, olha para o céu sertanejo e conversa com
Deus: Olhai pra esse povo pobre do sertão, meu Senhor Jesus Cristo. Com as
forças de Deus e do Frei Damião e do Santo Padim Padim Ciço, tudo ai de
melhorar. E vai!
Não é outro senão a própria terra. Terra e
homem se misturam num só, numa entranha inseparável. Ele o grão, a semente, a
esperança de fruto que precisa enraizar. Ela o leito que acolhe, que mesmo
esturricada cativa e afaga o seu filho. Homem cheirando a terra, terra com
feição de sertanejo. E nada sobrevive quando lhe retira o coração.
Por isso mesmo que é tão amigo da terra, tão
dependente dela pra tudo. Descalço caminha pela sua secura e sente a carícia do
espinho, eis que as flores já estão diante do seu olhar. Tudo seco, fumaçando,
mas é como se toda vastidão sertaneja fosse um jardim. E ele o jardineiro
prometendo à planta morta que amanhã tudo será diferente. Tudo será melhor.
Amanhã talvez não. Mas um dia será. Com fé em
Deus, em Frei Damião e no Santo Padim Padim Ciço.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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