Rangel Alves da Costa*
Menino do cais. Mas qual o cais do menino? Um
mundo de cais. O cais do rio, da avenida, da estrada. O cais da porta, da
janela, da solidão. O cais da praça, do descampado, da vereda espinhenta.
Qualquer cais poderá ser o cais do menino.
Mas não é todo menino que é menino do cais.
Verdade é que muitos meninos são afeiçoados ao menino do cais. Aqueles que
perambulam pelas ruas, esquinas, que dormem debaixo de marquises. Aqueles
pequenos engraxates, ou aqueles outros que simplesmente vivem ao relento dos
dias e das noites remexendo em lixões, cheirando cola, experimentando drogas,
fazendo pequenos furtos.
Mas não são tais meninos. Os meninos do cais
não são somente aqueles abandonados, sem família presente, sem lar. Os meninos
do cais não são aqueles que são avistados sem direção, sem norte na vida. Eis
que, acredite ou não, o cais conhece muito bem outros visitantes, e até
viventes da beira do cais, que são adultos, conscientes, conhecedores dos
meandros da existência.
Por isso que me vejo como um menino de cais.
Sim, também caminho por suas areias, molho meus pés nas espumas onduladas,
sento e converso com as pedras, recolho as flores tristes jogadas, escrevo
palavras nos seus beirais. Sou aquele menino de cais que fica horas a fio
procurando encontrar alguma coisa, avistar algo, ter diante de mim qualquer
resposta.
Meus olhos avistam as velas que chegam e
partem, vêem e sentem o mistério das distâncias das águas, acompanham as
gaivotas no seu voo do entardecer, miram as ondas que batem e que voltam.
Tantas vezes olham sem nada enxergar. E assim porque apenas presença sem motivo
maior.
Mas será engano imaginar que o cais que tanto
busco possui apenas águas adiante. A metáfora da vida procura o rio ou o mar
para se expressar porque ali toda uma simbologia de chegada e partida, de
ansiedade e solidão, de alegria e contentamento. Basta que o ser se imagine uma
vela ou um barco pequeno na beira das águas, às margens do cais, e tudo será
compreendido como uma incerteza: será que o barquinho vencerá aquela imensidão
de segredos e mistérios?
Meu cais é também de cimento, de chão, de
asfalto. Meu cais é e está em todo lugar. Meu barco está dentro de mim e no
próximo, está na porta que abro e na estrada que caminho. Meu barco também está
nos sonhos e esperanças, nos desejos e vontades, mas também nos medos e
temores, nas dúvidas e desencorajamentos.
Por isso mesmo que meu barco teme sair do
cais e seguir até as águas profundas. O meu barco teme ficar no cais e ser
tragado pelas dunas que se formam ao redor. Sei que é um barco desafiador, que
enfrentaria tormentas e temporais, mas não sei se sairia vitorioso com a
falsidade da brisa ou com a medonha presença da aragem.
Mas só tenho esse barco, só possuo esse cais,
e nada mais me resta fazer senão desafiar os perigos e ir muito além do
horizonte das gaivotas. Mas nunca sei o instante ideal de partir, de seguir
adiante para fazer valer outros objetivos além daquele de simplesmente viver.
Por isso mesmo que tanto procuro o cais, que tanto me avistam no cais, que
tanto avisto os arredores da vida através do cais.
Um dia, quem sabe, não mais serei visto no
cais. Ou a morte ou a vida, mas não mais o cais. Chega um tempo que os sonhos
encontram a realidade, os planos acostumam com o conseguido, as fantasias
sentem a dureza da pedra. E será num tempo assim que já não mais caminharei até
o cais.
Simplesmente aceitarei as dores da vida de
pés no chão, ainda que os espinhos dilacerem e atormentem. Mas continuarei
seguindo em frente, consciente que as ilusões ficaram para trás, no cais. Até
encontrar uma ponte. Que é o limite de tudo.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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