Rangel Alves da Costa*
Apenas imagina que ama, mas não sente amor. O
que sente é necessidade de presença, de posse, sede e fome de possuir. O amor
presumido não tem sentido se não for confirmado pelo exaurimento prazeroso do
outro. E para tal tem de abocanhar, destrinchar, experimentar a crueza de cada
pedaço de corpo, de cada entranha.
Paixão extravasada, ensandecida, impulsiva.
Será preciso mortificar para sentir desejo, será preciso violentar para se
assegurar da posse. E, mais que tudo, será preciso domar as forças do outro
para que tudo se transforme em absoluta e incontida servidão.
Extrapola na avidez, no gestual de
voracidade, no desejo ilimitado de abocanhar a pele, o coração, o sexo. Gestos
abruptos, vorazes, repetidos e cada vez mais fortes. Não importa a dor, o
sofrimento, o grito, a lágrima, a morte. Importa somente o prazer de ter para
devorar, para saciar a fome animalesca.
Os olhos devem ser gostosos de ser devorados.
Lamber as mãos e braços e depois mordê-los com voracidade, querendo as
superfícies, entranhas e ossos. Puxar os cabelos até arrancá-los, beijá-los,
esfregá-los sobre si, e depois soltar ao vento como êxtase orgásmico.
E tudo no corpo desperta desejo, querer,
sanha, paixão, lascívia incontida, afloramentos dos instintos sexuais mais
selvagens. Não apenas carnais como físicos e mentais. Impossível apenas a
proximidade, o toque, a retribuição do desejo, a relação amorosa. Quer beber o
corpo, quer comer o corpo, que experimentar da pele, do sexo, do sangue, de
tudo.
Talvez imagine seja paixão, ainda que
doentia, mas nada sente que seja passional. Talvez uma paixão animalesca
desconhecida, excessiva, brutalmente incontrolável. O que sente é abrasamento,
volúpia, ensandecimento, perda absoluta de controle. Porém sabe o que quer, que
é apenas subtrair, através da posse do corpo e do sexo, toda a força vital do
outro.
Não quer beijar, quer ir além do beijo para
morder, para sentir a vividez sangrenta da boca. Não quer abraçar, que ir além
de tomar em seus braços para usurpar o corpo, apossar-se das forças, domar e
subjugar. Não quer tocar, não quer acariciar, nada disso quer, mas apalpar,
beliscar, morder, lamber, sugar, ferir. Quer rasgar, quer entrar e sair quando
quiser.
Acaso fosse um prato de comida ou uma porção
de saboroso alimento, não se comportaria com qualquer etiqueta ou comedimento.
Também não experimentaria primeiro sabor nem comeria aos poucos, em bocados.
Tomaria tudo com as mãos, procuraria abocanhar tudo de uma vez, agiria como se quisesse
devorar tudo num só instante. Rasgando, estraçalhando, abocanhando, lambendo,
cuspindo, querendo ainda mais.
Não quer carinho nem carícia, afago ou
palavras, sequer o murmúrio ou o silêncio. Ora, está insensível, anestesiado
pela obsessão, pela voragem que extasia corpo, mente e alma, e exige a posse
frenética, a propriedade ilimitada, o domínio descomedido. E quer mais,
infinitamente mais.
Também não enxerga o corpo adiante, a beleza
da nudez ou as pétalas perfumadas sobre a pele. Também não ouve, não reage, não
é capaz de qualquer ação humanamente compressível. Há sim, há um brilho
estranho no olhar, um descompasso nos gestos e atitudes, uma feição sádica e
impetuosa.
Não, não quer o sexo, nada que seja apenas o
ato sexual. Os sexos se tocando, se preenchendo, se adentrando, não possui
nenhuma importância. Nada significa a penetração, os impulsos, o prazer, o
êxtase, o orgasmo. Quer apenas o corpo usado, extravasado, insaciavelmente
corrompido. Avista-se navalha cortante, brasa em chamas, punhal afiado.
Quer mais, muito mais. Ainda tem fome, tem
sede, está sedento, está faminto. O ser inteiro demonstra estar assim, carente
de tudo. Mas não é fome de comer, mas de se lambuzar; não é sede de beber, mas
de naufragar; não é carência que possa ser saciada senão com o absoluto desejo
de tudo ter, de modo voraz, promíscuo e insaciável.
Não há como comprovar qualquer patologia,
qualquer loucura, grave afetação mental. Ora, o outro não reclama, não procura
fugir, talvez goste de ser mortificado no festim antropofágico canibalesco.
Quer mais. Quem é o louco, onde está a loucura?
Quando a mente se deixa conduzir pelos
instintos sexuais, principalmente os desviantes, não há mais que se falar em
sentimento, amor ou paixão. A vida se transforma num ritual e a busca do sexo
em antropofagia. Com carne viva sobre a fogueira, mas sem dor. A dor é o prazer
no canibalismo amoroso.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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