Rangel Alves da Costa*
Dona Feia se enclausurou no seu mundo de modo
tão resoluto que quase ninguém sabia mais de sua existência. Talvez por não
saber onde estava a mulher, se ainda viva ou se já descambada dessa vida, todos
que passavam diante da janela olhavam naquela direção. O desejo maior era ver
algum sinal de Dona Feia, ainda que pelas brechas da madeira.
Acaso se aproximasse mais e olhasse
atentamente em direção às frestas, certamente encontraria sombras do olhar de
Dona Feia se esgueirando do outro lado, vigiando o mundo, a rua e os seus
caminhantes pelas juntas corroídas da madeira. Mas não avistaria a feição
entristecida, o olhar carregado de dor, a solidão em pessoa.
Coitada de Dona Feia. Vivendo enclausurada,
na solidão da vida, distante de tudo, sem nunca mais ter colocado os pés além
da portada, simplesmente porque se imaginava a mulher mais feia do mundo. E não
adiantava qualquer conhecido querer demovê-la desse pensamento, eis que se achava
com razões sentimentais suficientes para se achar assim.
Ao menos o espelho dela não falava, como
ocorre com o de muita gente, pois emudecera de vez pela velhice do tempo. Mas
toda vez que ela chegava chorosa, quase não encontrando coragem para se olhar,
ele tinha vontade de dizer que não suportava mais vê-la assim tão entristecida
por uma situação que não existia. Ora, mas você não feia! Diria.
Mas a sua mudez impedia de dizer qualquer
coisa e ter de suportar calado aquele injusto, profundo e doloroso sofrimento.
Mas culpa dela, sabia. Culpa da própria Dona Feia. Quando jovem não saía diante
do espelho, toda alegre e sorridente, cheia de festeiro no espírito e na alma,
alardeando a própria beleza sem igual. E bonita mesmo a danada.
E se penteava de minuto a minuto, cantava,
recitava versos, se enchia de ruge e batom, colocava um brinco e no outro
instante já vinha com outro, se achando uma verdadeira princesa. Lavandas,
loções, uma verdadeira primavera respingada pelo corpo inteiro. Somente o
espelho sabia dos motivos daquela festa toda, daquele enfeitamento todo. Estava
apaixonada. E estava mesmo.
Estava apaixonada, mas não correspondida.
Também o rapazinho sequer imaginava do amor nutrido por aquela mocinha.
Olhava-a de um jeito diferente, pois imaginava também ser olhado de forma
diferente, com um brilho de primeiro sol naquela feição tão doce e angelical.
Mas nunca se aproximou por medo de ser ignorado por ela. Não sabia, contudo, que
o seu distanciamento se tornaria num verdadeiro martírio para a vida da
mocinha. E foi por isso que começou a surgir a feiura na moça bonita. E também
o nome Dona Feia.
Sentindo-se rejeitada, recusada pelo rapaz,
começou a colocar a culpa em si mesma. Daí em diante já não procurava tanto o
espelho e as vezes que dele se aproximava era com feição entristecida, chorosa,
sentindo-se a mulher mais desprezível e inexpressiva do mundo. E assim porque
colocou na cabeça que a recusa era motivada pela sua falta de beleza, pela sua
feiura. Então se olhava como feia, se via como feia, passou a se sentir a
pessoa mais feia do mundo.
E uma pessoa tão feia não pode sair por aí
servindo de zombaria para os outros, logo imaginou antes de tomar a decisão que
mudaria para sempre o seu destino. Eis que decidiu abdicar do mundo exterior,
resolveu não mais sair pelas ruas e se fechar de vez nas quatro paredes de sua
casa, principalmente na solidão sombria de seu quarto. Resoluta, passou a fazer
de seu quarto todo o universo que dispunha. Poucas vezes andava pelos outros
aposentos da casa, mas jamais abrir a porta e sair para abraçar o sol. Talvez o
sol também não brilhasse diante de sua feiura, pensava.
Olhava a vida por trás da janela, escondida,
apenas lançando o olhar para o mundo lá fora. Via pessoas passando e olhando
naquela direção. Via quando seu moço bonito passava e depois disso chorava o
resto do dia, transbordando na noite. Já não se olhava no espelho, já não se
penteava, praticamente havia rejeitado viver. Um dia ouviu alguém batendo à
janela. As batidas se repetiram diversas vezes. Mas não abriu no momento.
No instante seguinte, caminhou devagarzinho e
foi até a fresta. Avistou alguém caminhando, já indo embora. Era ele. Não tinha
dúvidas. Ao olhar mais abaixo, rente ao umbral, percebeu uma flor. Mas tarde
demais para pensar em poesia, em amor, na vida. A morte lhe cairia como uma
beleza infinita. E Dona Feia partiu com sua beleza e sua dor.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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