SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 22 de agosto de 2014

NAQUELES TEMPOS


Rangel Alves da Costa*


Dizem que lugarejo interiorano que se preza guarda na memória cotidiana dos tempos idos algumas figuras e personagens inesquecíveis, com o justo reconhecimento de que tudo seria mais difícil sem eles.
A velha parteira, cujas mãos trouxeram à luz do mundo centenas e até milhares de cabeçudozinhos, já barrigudinhos e chorões desde sempre. O entregador de leite – e logicamente também o seu burrico – que acordava antes do madrugar para recolher a leitaria pelos currais e depois fazer a entrega de porta em porta pelas ruas da cidade.
Todos os dias, logo cedinho, lá estavam as mulheres num misto oficioso, divididas que entre a fofocagem, o olhar a vida e a porta dos outros desde cedinho e a varredura de ruas. E conversavam tanto enquanto iam varrendo, que muitas vezes esqueciam completamente o lixo juntado e se punham a fazer rodadas para o aprofundamento descomunal e pretensioso da vida alheia.
E antes mesmo que virasse a esquina para entrar na rua já se ouvia a vendedora do piau seco, com um balde na cabeça e outro na mão, dizendo que aproveitassem porque o rio estava se negando a mostrar o peixinho e que não havia coisa melhor do que cuscuz de milho ralado com piau sequinho passando na banha de porco. Com efeito, nada mais saboroso que aquele peixinho se esfarelando na boca e apreciado tanto com cuscuz ou feijão de corda como acompanhando uma cachaça da terra.
Já outra chegava, mas sempre com maior raridade, anunciando o araçá da estação. Frutinha dos deuses sertanejos, plantada por anjos e encontrada apenas por alguns iluminados, de sabor inigualável e com aquele gostinho de quero mais. Muito difícil de ser encontrada, colhida bem longe, lá por dentro da mataria fechada. E num instante vendia litro a litro da frutinha pequenina, amarelinha ou avermelhada, inigualável no sabor e na vontade de querer mais ainda de boca cheia.
Em épocas que antecediam as festas, principalmente da padroeira, chegavam os profissionais cerimonialistas do sertão. Tinham por função embelezar as pessoas, retratá-las, dar nova feição aos instrumentos festeiros guardados em armários. Então chegavam os vendedores ambulantes nas suas caminhonetes repletas de tecidos, roupas prontas e as maiores novidades do mundo. Tudo de tergal, algodão, fustão, chita. Sucesso tremendo os vestidos de chita, as roupas com babados e as camisas de volta-ao-mundo.
O velho fotógrafo, matreiro que só, conhecedor das boas oportunidades para realização de negócios, sabia que naquelas épocas as pessoas estavam mais propícias a desejarem ser fotografadas. E mesmo o retrato sendo três por quatro, faziam isso para ter à mão uma lembrancinha para entregar a um parente que chegaria para a festança, para um amor ocasional que surgisse, para colocar dentro do envelope e mandar lá pro sul do país. O instantâneo era batido na máquina sobre o tripé, com cortinado ao fundo, e logo revelada com sorriso de passarinho.
Após a pose e o estalido tradicional, o retratista ajeitava sua máquina de tripé, descia os panos que ficavam à frente da lente, manuseava o rolo de filme por dentro da caixa de madeira, e pedia para que a pessoa aguardasse um instantinho. E a mocinha, toda linda e demasiadamente pintada na bochecha e no lábio, saía toda sorridente no retrato em preto e branco. Já com o homem era diferente. Todo sério, colocava por cima a enganação de gravata e aparecia quase irreconhecível. Certa feita um cabra se negou a pagar, assegurando raivoso que o retratado era seu falecido avô. Foi briga feia.
Contudo, um dos mais importantes ambulantes que chegava ao lugar era o engraxate. Naquele tempo não havia menino perambulando pela rua perguntando a um e a outro se queria dar um brilho no pisante. Não, eis que o engraxate era pessoa adulta, já conhecida de outras datas, um bom amigo da clientela interiorana. Mas não era apenas engraxate, pois se assemelhando mais a cirurgião plástico de sapato velho. Muitas vezes olhava desconsolado para o sapato e perguntava se a pessoa queria mesmo que operasse um milagre. Em tom de brincadeira, perguntava ao sapato como tinha passado nos últimos dez anos.
Chegavam-lhe às mãos sapatos de muitas festas e andanças, todos carcomidos e tronchos, com cara do que não teria mais serventia. E então o engraxate falava baixinho consigo mesmo: Deus ainda vai me ajudar a chegar um dia que eu não precise mais desenterrar defunto. Depois olhava para o dono e dizia: Coisa do destino, mesmo antes de nascer esse sapato já era seu, pois mais velho que você. E quando o brilho esperado era alcançado, então passava com uma escovinha ou pincel um líquido pelos lados do solado. E o pisante parecia que era novinha em folha. Dois contos de réis, eis o preço.
Hoje praticamente não existem mais profissionais assim pelas cidades interioranas. Os sapatos agora estão imprestáveis num canto e o retratinho três por quatro na moldura junto com outras fotografias ou na carteira do sertanejo apaixonado. Mas já está amarelado, perdeu a simplicidade do sorriso. Perdeu a alegria inocente de um dia. E que falta faz essas coisinhas bestas, esses pequenos gestos, vidinha que era felicidade sem saber.    


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Anônimo disse...

Caro Dr. Rangel: No penúltimo parágrafo desta sua crônica em que você faz uma alusão ao velho sapato para ser consertado pelo velho sapateiro dos velhos tempos, fez me lembrar de um episódio passageiro ocorrido comigo.
Eu tinha uma ligeira aproximação com o jovem Luis Eduardo Magalhães pelos idos dos anos 78/79 em virtude da eleição que se aproximava, logo que meu irmão era filiado ao partido do Dr. ACM que tomaria posse em seu segundo mandato em 1978 ou 79. Portanto, há 36 anos passados.
Preparei-me para sua posse na Assembleia Legislativa e, como se tratava de um importante evento do pai de alguém que seria meu deputado, e de qualquer maneira eu o tinha como uma pessoa amiga, comprei um sapato tido como especial chamado sola-fina. Como você sabe, a duração desses eventos é de "doer". E em mim doeu do dedão do pé ao crânio e face, passando pelo coração. Logo que o sapato era bico-fino, comprei o mesmo número de sempre, mas foi o pior suplício que senti na vida. Eu estava num aperto no meio de uma multidão onde não podia me mover para nada e nem mesmo fugir, uma vez que passar no meio da multidão seria impossível. Suportei a dor firmemente, mas de lágrimas querendo descer olhos abaixo. Concluído o evento tomei o transporte de volta para casa e, ao chegar e retirar os sapatos dos pés havia calos de todos os tamanhos e em todos os dedos.
Guardei o referido "instrumento" - talvez como lembrança da dor que passei. Foi a única vez que o calcei. Agora, passados TRINTA E SEIS amos, interroguei um experiente sapateiro dos velhos tempos se havia como ele folgar o referido sapato. Respondeu-me que sim. Só que, nem ele nem eu sabia que um cromo de 36 anos não suporta mais a pressão da entrada da forma que faria o processo. Ao tentar fazê-lo, o novo-velho sapato estourou como estoura uma bomba na noite de São João.
Assim acontece com quem inventa moda.
Antonio Oliveira - Serrinha-Bahia.