Rangel Alves da Costa*
Quando Ninguém nasceu foi como ninguém
houvesse nascido. Filho de pobre, de pobreza além da absoluta, apenas nasceu. E
dizem que assim como um calango, um preá, um bicho do mato qualquer. Chorou sem
que gente de fora ouvisse, começou a avistar o mundo sem enxergar qualquer
outra pessoa senão seu pai e sua mãe. Ora, ninguém aparecia por ali para
visitar a pobreza, para saber se continuava viva ou se já tinha sucumbido de
vez, e quanto mais o coitado do Ninguém, um gasguitinho qualquer no couro e no
osso.
Esse apelido estranho Ninguém nunca soube
como surgido. Mas a verdade é que nasceu de um costume próprio do sertanejo. O
desvalido homem da terra, sempre vítima das inclemências das secas, da miséria
degradante e do esquecimento dos poderes públicos, costuma buscar algum culpado
pela revoltosa situação. Não culpa Deus, santos e anjos porque é na fé que se
apega para sobreviver. Sem ela nada seria possível. Mas começa a reclamar e a
dizer, mesmo no silêncio tempestuoso da dor interior, que ninguém ajuda, que
ninguém olha aquela situação, que ninguém bate à porta com uma esmola. E é
tanto ninguém que o menino, por falta de nome, começou a ser chamado ninguém. E
Ninguém continuou.
Ninguém chorava com fome e faminto continuava,
pois sua mãe não tinha forças nem para tomar a estrada em busca de mendigar
qualquer pão. Seu pai se metia nos matos ao alvorecer em busca de qualquer caça
e só voltava ao anoitecer, todo estropiado e sem trazer nada de pé de pena ou
de rastro no aió. Então Ninguém resolveu experimentar o sabor do barro da
tapera. De início achou muito sem gosto, mas teve a ideia de mijar por cima e
logo começou a achar papa de barro a melhor coisa do mundo. Mas tal atitude
quase provoca uma tragédia.
E o sinistro não se deu na barriga imensa e
cheia de verminoses, eis que bucho de menino sertanejo parece nem se importar
com a selva doentia que vai se formando dentro de si. Mas sim pela fome
desenfreada e a vontade incontrolável de sempre escavoucar a parede para tirar
mais um pouco de barro. De tanto fazer assim, de ir puxando pouquinho a
pouquinho, para depois molhar no mijo e se lambuzar, eis que a parede foi
fraquejando até ficar em vias de desabar, derrubando a tapera inteira por cima
de todo mundo.
Quando a mãe percebeu a tapera estremecendo,
encontrou forças não se sabe como, puxou Ninguém pelo braço e se danou porta
afora. Nas proximidades, debaixo de um umbuzeiro desfolhado, a esquálida mulher
se entregou a todo tipo de prece. Chorando de se acabar, não via a hora de a
moradia cair e transformar em restos o quase nada existente. Mas o barraco
continuou de pé até seus olhos se arregalarem em espanto descomunal. De repente
e de lá de dentro surge o danado do Ninguém trazendo na mão um tufo de barro.
Outro já estava na boca.
Enquanto a mãe rezava desesperada, com os
olhos turvos e já vendo a hora de tudo cair, Ninguém sentiu uma fome tão grande
que se danou a correr em direção ao seu prato de comida, ao barro da parede em
tempo de desabar. Depois de abrir um buraco ainda maior, encheu a mão e a boca
e voltou tranquilamente. Entretido em mastigar, de nenhum pensamento pra sua
idade, verdade é que nem percebeu sua mãe estirada no chão, desmaiada depois do
susto tomado. E só despertou com a chegada do marido, mais uma vez sem trazer
nada, e que mesmo faminto passou boa parte da noite escorando a parede com
pedaço de pau.
Assim foi a infância de Ninguém, se assim se
pode chamar a fase da meninice onde outra coisa não fez senão comer barro e
tocaiar calango pra assar no fogo e saborear um prato diferente, verdadeira
iguaria. Os anos iam passando e Ninguém continuava mirradinho, magricela,
buchudinho que só, parecendo que não suportaria muito tempo na estrada. Quando
seu pai foi mordido no calcanhar por uma cobra faminta e no meio do mato mesmo
se despediu dessa vida, sua mãe chamou-o ao lado da cruz pra dizer que
doravante ele seria o homem da família. Me lasquei, pensou Ninguém. E não
demorou muito pra sua mãe desgostosa bater as botas numa situação lamentável:
já havia desistido de viver, o juízo lhe faltou de vez e se prostrava na
esteira como se morta estivesse, com as mãos entrelaçadas por cima do peito
ossudo. Até que não se mexeu mais.
Agora foi que me lasquei de vez, disse
Ninguém ao jogar a última pá de terra por cima da cova. Ainda meninote, ao
retornar à solidão da tapera e refletir sobre o que fazer dali em diante, olhou
de canto a outro e nada avistou que tivesse valia. Um pote, uma moringa, tronco
velho servindo de mesa, pedaços de pau como tamboretes, esteiras carcomidas,
cacarecos, somente isso. Saiu adiante da tapera, igualmente olhou de lado a
outro e também nada avistou que tivesse algum valor. Não havia cachorro,
papagaio, jegue ou jumento, muito menos uma vaquinha ou um cavalo magro. Apenas
o umbuzeiro desfolhado, a paisagem de um marrom esturricado, um calorão de
lascar.
Tô lascado, disse e repetiu entristecido,
baixando a cabeça em desolação. E assim de cabeça baixa foi andando, caminhando
sempre adiante como se os seus passos nus já conhecessem aquelas estradinhas de
terra batida. Não olhou pra trás uma vez sequer, não se despediu um só instante
da moradia. Como estava ela ficou pra trás, de porta aberta, sem quase nada por
dentro. E Ninguém foi simplesmente seguindo adiante, sem destino, sem saber onde
queria chegar.
Não se pode afirmar ao certo o que lhe
aconteceu depois da partida. Talvez tenha sido abençoado na caminhada, ou não;
talvez já tenha morrido, ou não. Pode ser que esteja entre nós agora, de
gravata ou comendo o barro da esmola. Nada se sabe do que lhe aconteceu. Talvez
tenha nome e vida. Ou continue Ninguém.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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