SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 29 de outubro de 2014

A FLOR DO MANDACARU E OUTRAS FLORADAS


Rangel Alves da Costa*


Tornou-se comum imaginar o sertão como retrato acabado de desolação. Sua moldura carcomida pelas intempéries, tristezas e sofrimentos, idealiza uma paisagem apocalíptica e medonha. A verdade é que muitos pensam assim, ao longe visualizam o sertão como sombras de um fim de mundo. Não que tudo seja o inverso ou que o retrato tantas vezes seja mesmo doloroso, mas existem outras feições de encantar os olhos e até duvidar que ali esteja tanta beleza e pujança de vida.
Nas suas entranhas, o sertão se mostra muito além do rebanho esquelético, das ossadas por cima da terra rachada, do barro tomando o fundo dos tanques, do olhar de padecimento do sertanejo. Mesmo já estando em grande parte devastada pelo próprio homem, a sua natureza ainda possui feições de exuberância. A força da vida vence as ameaças e se mostra como flor na planta ressequida de sol, contradiz as predisposições climáticas e surge como frutos no meio do mato. E no marrom-acinzentado de repente surgem os vermelhos, lilases, rosáceos, amarelados, bem como a magia do araçá.
Muito já se conhece de convívio, retrato ou recordação. A qualquer tempo e a sempre confirmada beleza do luar sertanejo. Depois do sol imenso e abrasador, a aragem do entardecer vai chamando as sombras da noite e seu candeeiro maior. E então a lua desponta no olhar como força mágica para encantar um povo marcado pela dureza dos dias. O sertão então se vê tomado por um romantismo caboclo que torna o seu povo poeta de si mesmo e de sua existência. Mas não é só. Além de surpresas que deslumbram os olhares dos visitantes, o sertão guarda outras impressões de arrebatar e seduzir corações e mentes.
Retratos costumeiros para alguns, maravilhamento para outros, mas a verdade é que em determinados períodos do ano a natureza se expressa de modo fascinante. E tudo surge como para demonstrar que a exuberância brota no inesperado e imaginariamente infértil. Que não se espante diante da planta solitária florindo por cima do chão cimentado de sol, que não se tenha como impensável avistar abelhas fazendo festa diante do néctar e frutos de plantas de aparência esquelética. E assim porque o sertão também floresce nos seus jardins tão hostis.
São os avessos sertanejos. As paisagens cinzentas escondem verdadeiros arco-íris nas suas entranhas. E não há exemplo maior que a floração das craibeiras. Difícil imaginar que naquela secura possa surgir florada tão viva e encantadora. É uma visão realmente inspiradora. Mesmo distantes, os olhos divisam as cores majestosas tomando a copa das árvores defronte às moradias, beiras de estradas, sempre se sobressaindo nas paisagens. Talvez vaidosas demais, as craibeiras gostam de crescer afastadas de outras árvores, em local onde possam florescer e logo serem reconhecidas pela magia de sua florada.
A partir de setembro, em plena estiagem, com tudo ao redor chamuscado e quando o calor começa a abrasar, eis que as craibeiras desafiam o clima e irrompem com suas folhas amareladas. A simbologia da beleza em meio ao impensável. Mas tudo ali parece ser possível. Cactos que nascem e florescem por cima das pedras grandes, como ocorre com as cabeças de frade. Também nas bromélias como a macambira, no velame, na palma e em todas as cactáceas. São flores vistosas, com viço e colorido contrastando com os arredores. Já a flor do mandacaru possui uma simbologia especial, eis que dizem ser o próprio sol brotando na planta que nunca morre.
Mas muita gente sequer imagina que o mandacaru tem flor, que também tem época de sua floração. A ideia mais comum é daquela planta cactácea, de espinhos longos e finos, sempre de tez verdejada, ainda que mais para o marrom-acinzentado, magra e de braços erguidos em direção aos céus. Já a denominaram de candelabro sertanejo, também de beata matuta com braços erguidos em eternas súplicas.
Não só o mandacaru tem flor como esta é de beleza singela e cativante. Tantas vezes, com tudo definhando ao redor e até mesmo o cacto parecendo que não vai mais suportar, mas a flor se abre desafiando a morte que a tudo ronda e dizendo que o sertão não se rende às fornalhas ensolaradas. É a flor se encharcando de sol para mostrar que a vida ali continua com sua pujança, esperando somente a gota d’água para o renascimento de cada planta, de cada bicho, de toda a esperança sertaneja.
De modo geral, as árvores e plantas sertanejas, desde as mais raquíticas às portentosas, tornam a floração um espetáculo grandioso, sempre contrastando com as folhagens secas e esturricadas de poucos dias atrás. As flores do campo surgem nos beirais das veredas espinhentas, o quipá floresce e abre seu fruto amarelado para um vermelho de fogo. Mas quem quiser experimentar tem de vencer os espinhos. Aliás, dizem que foi num espinho de quipá que Virgulino Lampião feriu seu olho direito, deixando-o com pouca visão.
Quando na sua missão pelos sertões, o velho Antônio, o Conselheiro, pregava para fanáticos e fiéis o Salmo da Flor do Mandacaru, que dizia: Bem-aventurados aqueles que comigo caminham para brotar na fé a mesma força que possui a flor do mandacaru. Com as mãos levantadas aos céus, como faz o mandacaru, chama por Deus e sente florescer no coração a flor da vida, como a flor do mandacaru.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

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