Rangel Alves da Costa*
A vida é memória de tudo. Do presente adiante tudo será escrito, mas o
segundo atrás já faz parte das páginas do seu grande livro. Contudo, muito já
foi vivenciado há tanto tempo, desde os primórdios aos amarelados das
fotografias, que necessita ser rebuscado por alguém que dê a devida importância
àqueles percursos, costumes e modos de existência. Daí a importância do
memorialismo e do memorialista, pois sem essa busca o passado das cidades, das
pessoas e das instituições, muito seria relegado ao esquecimento.
Não faz muito tempo que li um texto onde um jornalista e poeta
sergipano se reportava aos memorialistas como pessoas que se despem da
realidade e vão abrindo suas sepulturas a partir de seus escritos saudosistas e
enfadonhos. Que pensamento infeliz e desprezível. E cita ainda que um texto que
começa com algo assim como “no meu tempo” é clara demonstração de uma saudade
idiota do passado, preliminar da escrita que desnecessariamente vai remexer em
baús adormecidos. Mas que lástima pensar assim!
Por mais que se queira esquecer ou negar o passado, a verdade é que
ninguém pode mais apagar os passos caminhados. O ser humano é histórico, fruto
do passado, de raízes e linhagens. O sobrenome que se ostenta agora é de
construção antiga, de uma confluência de gerações outras que não podem ser
renegadas. O agora é somente um instante, mas inexistente sem o suporte do
anteriormente acontecido. Tudo que se tem hoje é apenas uma construção do
ontem. Então, por que não reverenciar a memória, as recordações, as feições
passadas?
Não sou velho nem novo, tenho dez, mil anos, tanto faz. Reverencio o
passado como o que há de melhor e o tenho como percurso e lição, e por isso
mesmo sinto ser tão necessário rebuscá-lo como avistar e compreender o presente.
Ademais, é lá atrás onde estão as raízes, as linhagens, as heranças, e tudo que
timidamente foi dando causa ao que somos e temos agora. Então por que
desprezá-las?
Tenho o memorialismo como estética da memória, como forjamento no ferro
daquilo que não pode ser esquecido, como o cinzelar na madeira o que de melhor
foi vivenciado e construído, mesmo que o retratado seja de um tempo muito
distante. Por consequência, tenho o memorialista como o grande artesão da
história, aquele que preserva nas letras e nas imagens os espelhos de vidas e
ações que jamais deverão deixar de refletir sobre os tempos.
A escrita memorialista, como o termo logo deixa transparecer, se volta
ao passado para trazer a lume os feitos, as proezas, as histórias, as
vivências, os caminhos de antigamente. E não precisa ser de um tempo muito
distante, pois até mesmo o passado recente precisa ser preservado na escrita e
na imagem. O ontem envelhecerá de tal modo que mais tarde tenderá ser expurgado
como algo inexistente. E cabe ao memorialismo não deixar que isso aconteça.
Assim, o que é o memorialista senão o cultor da memória própria,
individual ou coletiva; aquele toma a si a incumbência de conservar, preservar,
reter para o conhecimento presente e para a posteridade os conhecimentos
adquiridos anteriormente. E a vida, a sociedade, o mundo, tudo seria apenas um
livro em branco sem nada que conservasse o relato dos feitos, as realizações,
as raízes de um povo.
Basta olhar o passado, e tudo é memória. As artes, os monumentos, os
museus, a literatura, os retratos, tudo é memória. Não são apenas as guerras,
as vitórias, as revoluções, as descobertas, os grandes feitos que devam ficar
preservadas na memória coletiva, mas também os feitos familiares, as conquistas
pessoais, as realizações de cada um. Ora, se uma biografia não interessa a uns,
a outros certamente interessará.
Daí ser inadmissível que um texto se reporte ao memorialismo e aos
memorialistas com negativismos e menosprezos. Nada é construído de agora, se
antes não brotar de raiz. Por isso, em tudo o passado, a memória, que aceite
que seja assim ou não. Ademais, não foram poucos os escritores que alçaram fama
tendo as memórias como características maiores de seus escritos.
Para citar alguns, não se pode deixar de reconhecer os escritos
memorialistas de José Lins do Rêgo (Meus verdes anos, Menino de Engenho),
Visconde de Taunay (Memórias) Pedro Nava (Baú de Ossos, Chão de Ferro), Joaquim
Nabuco (Minha Formação), Graciliano Ramos (Memórias do Cárcere). E mais
recentemente Marcelo Rubens Paiva (Feliz Ano Velho) e Fernando Gabeira (O que é
isso, companheiro?). E quem haverá de dizer que tais obras não são
importantíssimas para o conhecimento da nossa história e nossa formação?
Jorge Amado, o maior romancista brasileiro, não deixou de ser também um
exímio memorialista. Seus livros são marcados por suas lembranças e recordações
de sua infância nas terras cacaueiras, nas andanças pelos sertões sergipano e
baiano, na sua vida de menino grapiúna. Nos seus livros os retratos escritos,
as imagens dos acontecimentos, os reencontros com o que as gerações atuais nem
imaginariam de ter realmente existido.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário