Rangel Alves da Costa*
Aconteceu no sertão. Fato triste, lamentável,
aparentemente impensável de acontecer. Mas aconteceu. Depois da bonança a
necessidade, depois dos rebanhos o nada ter, depois do compartilhamento o viver
sozinho. Os contrastes numa pessoa de tão bom coração.
Era um velho senhor, vivente na fronteira dos noventa.
Continuava com firmeza nos ossos, no passo, no reconhecimento aos amigos. E
também com uma lucidez exuberante, esbanjando sabedoria nas suas lições matutas
de todo dia.
Havia sido pessoa de posses noutros tempos, se
aproximando da abastança, como se dizia por lá. Teve fazenda, rebanhos, sacas e
mais sacas de cereais e algodão estocadas no depósito ladeando a moradia na
propriedade. Também dinheiro debaixo do colchão, e dizem que muito dinheiro.
A força e o trabalho do homem, contudo, não o protege
totalmente das forças da natureza, das medonhices climáticas, das propensões da
terra sertaneja para o esturricamento de matar raiz. Assim, depois de seguidas
estiagens o rebanho foi sumindo, os pastos secando, tudo minguando.
A casa foi vendida quando o sertanejo não suportava
mais ficar na malhada da fazenda devastada olhando a tristeza ao redor. Para
continuar sobrevivendo foi se desfazendo do restante, de tudo. Com o restinho
da economia se transferiu de vez para a cidade.
Pouco tempo depois a esposa partiu sem dizer adeus.
Estava sentada numa cadeira de balanço num entardecer sertanejo quando deu um
piripaqui e morreu ali mesmo. Como não tinha filhos, o jeito que teve foi se
virar sozinho. E assim viveu por todo o restante da vida.
Com os anos passando, apenas a sabedoria dos tempos ia
se acumulando como coisa boa. Dinheiro não, que não tinha mais. Teve de mudar
de casa confortável para uma tapera de fim de rua, já nas distâncias do lugar.
Os tantos amigos que tinha também foram rareando.
Dizia a si mesmo que muitos dos que se dizem amigos se
vão à medida que o ter também se vai. Se o cabra passa a nada ter, esta também
será sua dimensão e medida: nada. Quando muito a consideração daqueles da mesma
idade e de outros que não conheciam o antes para conhecer o depois.
Desse modo ia levando sua vida numa simplicidade
beneditina, sem qualquer ostentação. E não poderia ser diferente. Estava
empobrecido, sobrevivendo de minguada aposentadoria, sem comprar roupa nem
sapato novo, sem poder se dar ao luxo de saborear outra coisa que não fosse o
pão, o leite, o mingau de farinha, o arroz sem sal.
Dieta forçada na necessidade. Uma perna de preá, um
naco de carne seca, um pedaço de mortadela. Água de moringa, cadeira de
tamborete, cama de varal, luz de candeeiro, uma porta caindo, uma janela
entreaberta. E tudo quase sempre. O gato sumiu, o gato morreu, o gato
desapareceu. O velho nunca mais viu o seu gato.
Ao entardecer caminhava até a pracinha da cidade. Tal
rotina era a talvez a única coisa que lhe dava verdadeira satisfação na vida,
pois sabia que ali encontraria uma juventude interessada em sua história, no
seu conhecimento, nos seus casos de sol e lua. E chegava um depois outro, e
assim o palavreado se prolongava até o sombreado da noite chegar.
Um dia deixou seu banco de praça para não mais
retornar. Lua grande, lua bonita, uma imensidão tomando o negrume do céu
sertanejo. Colocou um banquinho na frente de casa e se pôs a recorder os tempos
idos. Nunca mais tinha feito isso, nunca tinha encontrado coragem para voltar o
olhar mental para as felicidades de um dia.
Relembrou os tempos de fazenda e dinheiro muito, mas
também as agonias do rebanho faminto; recordou fechando a porteira e tomando a
Estrada; mas principalmente recordou de sua falecida esposa. Parecia vê-la ao
lado, falando, sorrindo, chamando. E sem querer falou sozinho e disse que já
estava indo ao seu encontro.
O inconsciente falando a verdade, antecipando os
fatos, pois assim que entrou e deitou na cama de varal sentiu uma presença
estranha ao lado e uma força lhe minando a vida. E suspirou para a morte. Agora
já olhava a estrada adiante e seguia em busca de sua amada esposa.
E lá em cima, num lugar que não sabia muito bem onde
era, foi levado por uma estrada que logo reconheceu como aquela de seu antigo
terreno, de sua propriedade. Reconheceu animais, plantas, a paisagem enfim. E
uma surpresa ainda maior o aguardava.
De repente surgiu a sua casa, sua bela residência nos
tempos de muitas posses. E viu sua falecida esposa saindo da porta e
caminnhando em sua direção. Deu-lhe um forte abraço e disse que já o esperava.
Ali viveriam eternamente, só os dois, possibilidade muito diferente do percurso
da vida terrena.
Ele então perguntou se ali era o paraíso e ela
simplesmente respondeu que não. Era apenas a eterna morada dos justos.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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