SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 16 de outubro de 2014

VIDA E MORTE SERTANEJA

Rangel Alves da Costa*


Aconteceu no sertão. Fato triste, lamentável, aparentemente impensável de acontecer. Mas aconteceu. Depois da bonança a necessidade, depois dos rebanhos o nada ter, depois do compartilhamento o viver sozinho. Os contrastes numa pessoa de tão bom coração.
Era um velho senhor, vivente na fronteira dos noventa. Continuava com firmeza nos ossos, no passo, no reconhecimento aos amigos. E também com uma lucidez exuberante, esbanjando sabedoria nas suas lições matutas de todo dia.
Havia sido pessoa de posses noutros tempos, se aproximando da abastança, como se dizia por lá. Teve fazenda, rebanhos, sacas e mais sacas de cereais e algodão estocadas no depósito ladeando a moradia na propriedade. Também dinheiro debaixo do colchão, e dizem que muito dinheiro.
A força e o trabalho do homem, contudo, não o protege totalmente das forças da natureza, das medonhices climáticas, das propensões da terra sertaneja para o esturricamento de matar raiz. Assim, depois de seguidas estiagens o rebanho foi sumindo, os pastos secando, tudo minguando.
A casa foi vendida quando o sertanejo não suportava mais ficar na malhada da fazenda devastada olhando a tristeza ao redor. Para continuar sobrevivendo foi se desfazendo do restante, de tudo. Com o restinho da economia se transferiu de vez para a cidade.
Pouco tempo depois a esposa partiu sem dizer adeus. Estava sentada numa cadeira de balanço num entardecer sertanejo quando deu um piripaqui e morreu ali mesmo. Como não tinha filhos, o jeito que teve foi se virar sozinho. E assim viveu por todo o restante da vida.
Com os anos passando, apenas a sabedoria dos tempos ia se acumulando como coisa boa. Dinheiro não, que não tinha mais. Teve de mudar de casa confortável para uma tapera de fim de rua, já nas distâncias do lugar. Os tantos amigos que tinha também foram rareando.
Dizia a si mesmo que muitos dos que se dizem amigos se vão à medida que o ter também se vai. Se o cabra passa a nada ter, esta também será sua dimensão e medida: nada. Quando muito a consideração daqueles da mesma idade e de outros que não conheciam o antes para conhecer o depois.
Desse modo ia levando sua vida numa simplicidade beneditina, sem qualquer ostentação. E não poderia ser diferente. Estava empobrecido, sobrevivendo de minguada aposentadoria, sem comprar roupa nem sapato novo, sem poder se dar ao luxo de saborear outra coisa que não fosse o pão, o leite, o mingau de farinha, o arroz sem sal.
Dieta forçada na necessidade. Uma perna de preá, um naco de carne seca, um pedaço de mortadela. Água de moringa, cadeira de tamborete, cama de varal, luz de candeeiro, uma porta caindo, uma janela entreaberta. E tudo quase sempre. O gato sumiu, o gato morreu, o gato desapareceu. O velho nunca mais viu o seu gato.
Ao entardecer caminhava até a pracinha da cidade. Tal rotina era a talvez a única coisa que lhe dava verdadeira satisfação na vida, pois sabia que ali encontraria uma juventude interessada em sua história, no seu conhecimento, nos seus casos de sol e lua. E chegava um depois outro, e assim o palavreado se prolongava até o sombreado da noite chegar.
Um dia deixou seu banco de praça para não mais retornar. Lua grande, lua bonita, uma imensidão tomando o negrume do céu sertanejo. Colocou um banquinho na frente de casa e se pôs a recorder os tempos idos. Nunca mais tinha feito isso, nunca tinha encontrado coragem para voltar o olhar mental para as felicidades de um dia.
Relembrou os tempos de fazenda e dinheiro muito, mas também as agonias do rebanho faminto; recordou fechando a porteira e tomando a Estrada; mas principalmente recordou de sua falecida esposa. Parecia vê-la ao lado, falando, sorrindo, chamando. E sem querer falou sozinho e disse que já estava indo ao seu encontro.
O inconsciente falando a verdade, antecipando os fatos, pois assim que entrou e deitou na cama de varal sentiu uma presença estranha ao lado e uma força lhe minando a vida. E suspirou para a morte. Agora já olhava a estrada adiante e seguia em busca de sua amada esposa.
E lá em cima, num lugar que não sabia muito bem onde era, foi levado por uma estrada que logo reconheceu como aquela de seu antigo terreno, de sua propriedade. Reconheceu animais, plantas, a paisagem enfim. E uma surpresa ainda maior o aguardava.
De repente surgiu a sua casa, sua bela residência nos tempos de muitas posses. E viu sua falecida esposa saindo da porta e caminnhando em sua direção. Deu-lhe um forte abraço e disse que já o esperava. Ali viveriam eternamente, só os dois, possibilidade muito diferente do percurso da vida terrena.
Ele então perguntou se ali era o paraíso e ela simplesmente respondeu que não. Era apenas a eterna morada dos justos.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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